
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
Por quê eu desisti de servir os pobres
quarta-feira, agosto 20, 2014 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments
Claudio Oliver

Ao longo da vida guardo o hábito de sempre perguntar se o que
estou fazendo tem sentido, se diante de meu Senhor e Deus estou com meu coração
alinhado à Sua vontade, se não estou errando o alvo. Sigo com disciplina a
regra dos três “por quês”, que pergunta a cada resposta dada o tipo de pergunta
que só as crianças sabem fazer e que me auxilia a gerar um vetor de mudança
permanente, de auto-crítica e de realinhamentos pessoais. Assim, a cada etapa,
ao fazer cada coisa pergunto: Por quê? E qualquer que seja a resposta, a ela de
novo pergunto: Por quê? Me sinto no caminho quando aquilo que faço ultrapassar
o terceiro por quê, e daí sigo adiante.
Já faz algum tempo me pus a refletir sobre a vida de Jesus,
sobre o princípio da Kenosis,
ou esvaziamento, baseado no texto de Filipenses 2:1-11, sobre a encarnação de
Jesus na realidade e sobre os inúmeros contatos e conversas dele com gente tão
miserável como os leprosos e tão ricas como publicanos, chefes de sinagoga e
príncipes de seu povo; com famílias da classe média, com proprietários e com
servos e mendigos. Sobre o que ele via e como agia. E tudo isso foi crescendo e
me fazendo pensar no texto de Mateus 5, de ele dizer aos pobres que mantivessem
suas vidas no caminho e animados por serem pobres, por que deles era a
possibilidade de terem a vida dirigida e controlada por Deus e perceberem Sua
boa e perfeita vontade.
Devagar, nos últimos anos, além da reflexão bíblica, tenho
observado o quanto vários amigos extremamente sinceros vem e vão, se empolgam e
começam a servir e logo se ocupam de volta com seus afazeres e preocupações.
Vejo também com que freqüência alguns outros pagam para que alguém cumpra o
serviço de Deus e fazem isso por tempos determinados e movidos da maior das
sinceridades, ainda que de longe e sem envolvimento pessoal.
De uma outra perspectiva observo o quanto a pobreza se entranha
na vida dos pobres, e quanto esta somente revela muitas vezes seu desejo mal
sucedido de possuir, de ter acesso ao consumo destruidor de tudo, de como sua
situação se constrói pela sedução das mesmas coisas que seduzem e destroem os
ricos. O mesmo individualismo, o mesmo egoísmo, a mesma tendência a sentir-se
confortável e identificado com a posse das coisas. E a adesão inegociável a um
estilo de vida e modo de pensar que os prende ao mito da necessidade moderna,
ao desejo mítico de evoluir e à submissão ao mito do desenvolvimento.
Igualmente a ricos, pobres e remediados, o mesmo convencimento
de que o que precisam é de algo que o mercado, o dinheiro, o governo ou alguma
agência pode lhes oferecer. Que serão felizes com a posse, com a pança cheia
(uns com pão, outros com brioches) e com o fluir permanente do dinheiro que
tudo pode e tudo resolve. E dentre estes, alguns bem intencionados estendem a
mão para “incluir” outros no estilo de vida ou no patamar que alcançaram. À mão
estendida de cima para baixo, chamamos serviço.
Descobri ao longo dos anos que a própria posição de servir aos
pobres, de compromisso com a libertação, estava cheia de superioridade, daquele
tipo de superioridade que se traduz por dar ao outro o que eu tenho, uma vez
que sutilmente assumo com meus atos que o que eu tenho ou faço era o que ele
deveria ter ou fazer, uma tradução percebida na sutil arrogância das tais
políticas de “inclusão”, sempre buscando colocar o outro dentro da caixa onde
vivo, incluído no meu estilo de vida.
Tudo isso foi me levando a desistir de servir os pobres. Ainda
que nem de longe me alinhando com aqueles que a este ponto, do alto de sua
riqueza, conforto e bem estar possam estar dizendo “ta vendo? É isso que eu
sempre pensei.” Lamento informar a estes que nem de longe creio em seu estilo
de vida separado do contato com o pobre, com o desvalido, o faminto, o nu, o
feio, o mal cheiroso, o inculto e o bárbaro. Não me alinho com aqueles que
pagam seus impostos ou contribuem para caridade dizendo assim estar cumprindo
seu papel. Não é disso que falo. A estes continuo retransmitindo a mensagem de
Jesus, confrontadora de seu estilo de vida cego, insensível e arrogante, uma
mensagem que chama de loucura aquilo que estes chamam de segurança.
Desisti de servir os pobres por outra razão.
Desde 1993, quando saí para as ruas com um bando de meninos e
meninas na direção das populações de rua, havia desenvolvido uma mística de, a
cada saída nas noites frias de minha cidade, não ir encontrar mendigos, ou
carentes. Sempre dizia aos garotos àquela época que eu nunca me disporia a
servir pão a um mendigo, ou fazer-lhe a cama, ou vestir sua nudez. Nosso moto,
naquele tempo, era “encontrando Jesus na pessoa do pobre mais pobre”. Servir,
alimentar e vestir Jesus era nossa motivação, isso sim me animava. E
descobrimos com aquelas saídas, que a cada encontro desse com um Jesus assim
disfarçado, que os chamados miseráveis se transformavam em mestres, em denunciadores
de nossa miséria pessoal, de desmascaradores de nossos mecanismos de
manipulação e nos víamos, de repente, espelhados neles, usando as mesmas
desculpas, mentiras e escaramuças para ter o que queríamos. Talvez com um pouco
mais de sucesso, e certamente simplesmente com mais sorte social, e mecanismos
de segurança. Mas descobrimos à época, que nós éramos eles. Aqueles que se descobriram assim, se libertaram, cresceram e
mudaram. Confrontados por Jesus e ensinados por ele no contato com suas
próprias pobrezas e misérias, descobrimos, muitos de nós, o que eram boas
novas. Naquele tempo, e daquele tempo, muitos fomos transformados pelo toque de
Jesus e pela boa nova que ele nos tinha a transmitir como pobres que nos
descobrimos. No entanto, nem sempre esta mística foi mantida como chama
acesa, voltei tantas vezes a servir aos pobres, a me deixar levar pela
possibilidade de estar na posição de ajudador e fui me esquecendo muitas vezes
de minha própria miséria.
Como disse acima, ficar longe dos pobres e julgar suas atitudes
e descaminhos do alto do conforto de minha posição social superior não é a
alternativa que exponho aqui. Ajudar os pobres, conscientiza-los e inclui-los
se mostra um mito, mais um daqueles nascidos no desenvolvimentismo dos últimos
60 anos. A alternativa que apresento é outra, traduzida no encontro, no
reconhecimento e na identificação.
Desisti de ajudar os pobres, de servi-los e de salva-los. E isso
porque tenho re-descoberto uma verdade dura: a de que Jesus não tem nenhuma boa
notícia para quem serve os pobres. Jesus não veio trazer boas notícias a quem
serve os pobres, ele trouxe uma boa notícia aos
pobres. Ele não tem nada a dizer a outros salvadores, a quem disputa com
Ele o cargo de Messias, de Redentor. A agenda de Jesus só traz uma mensagem aos
que se reconhecem pobres, nus, feridos, cansados, sobrecarregados, carentes e
sem esperança. Aos demais, sua agenda tem pouco ou nada a oferecer.
A única maneira de permanecer com os pobres é se descobrimos que
somos nós mesmos os miseráveis, é se reconhecemos a nós mesmos, ainda que bem
disfarçados, naquele que está diante de nossos olhos. Ao encontrarmos neles
nossa miséria, ao nos dar-mos conta de nossa carência, da desesperada
necessidade de sermos salvos, ai nos encontramos com a agenda de Jesus.
Deus não se apresenta em nossa capacidade de curar, mas em nossa
necessidade de sermos curados. Descobrir esta nossa fraqueza nos coloca sem
nada para oferecer, servir, doar, mas revela nossa necessidade de sermos
amados, curados e restaurados.
Por ai é que faz sentido que o poder que existe em nós não é o
poder de nossas capacidades e riqueza, mas o poder residente em nossa miséria
pessoal, tão bem escondida e disfarçada em nossas posses e estabilidade. Como
diz Jean Vanier em um livro que li recentemente: “Somos chamados a descobrir
que Deus pode trazer paz, compaixão e amor através de nossas feridas”. Como
passou a fazer sentido o texto que fala do Messias, e que diz: pelas suas
pisaduras, fomos sarados. Os demais messias tendem a escapar do exemplo de
Jesus de esvaziar-se a tal ponto de ser um de nós, de morrer conosco e de abrir
assim a porta da ressurreição para nós.
O poder que Jesus usou para nos curar e continuar curando não
reside em seu acesso ao poder universal, mas em sua identificação conosco na
cruz. Em se abrir em chagas e feridas, em se tornar um de nós, em viver nossa
vida.
Desisti de servir aos pobres. Estou voltando a encontrar os
pobres e me encontrar neles. Voltei a descobrir a miséria que se esconde nas
vidas bem montadas de nossa falsa segurança. E com isso posso entender o Jesus
que fala com leprosos e com ricos homens de negócios, com cobradores de
impostos em suas festas e com enfermos miseráveis. Em sua identificação com
todos e cada um Ele via o que talvez mais ninguém via: a extrema miséria e
pobreza da condição humana, independente de qualquer status ou roupagem social.
Passei a reencontrar minha pobreza, a me ver em cada situação de
miséria, e de me colocar em contato com minhas dores internas. Dali clamar por
cura, libertação, comunidade e amor. Pedir misericórdia e ser restaurado.
Quem serve, serve de cima, Jesus nos chama a encarnar a nos
vermos no outro e a nos colocarmos por baixo. A deixar de confiar em nossa
capacidade e mudar o rumo para irmos ao encontro de nossas feridas e dores. De
lá descobrir o poder que existe em sermos menos e não mais.
Desisti de servir aos pobres. Voltei a descobrir minha pobreza.
E com ela posso clamar: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim”.
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