O mundo da eletricidade e dos bits, belíssima ironia, não foi agraciado com movimentos mais delicados que os de uma montanha. Profusão de rodas que obstam mutuamente o fluxo; deuses de olhos incontáveis que tudo flagram e tudo gravam; leis e burocratas ditando secretamente nossos passos e infortúnios. Redes de intrincadas constrições públicas e privadas – e tudo, sentimos e ressentimos, nos esmaga.
O sítio que nos cabe é esse: a dura arquitetura dos castelos de pedra, que se elevam grotescamente tendo por alicerces a lei e a chibata. Em um tal universo, os que ousam manejar as adagas da leveza condenam-se ao exílio – os poetas, os arautos da graça. Platão os tinha por perigosos e indesejáveis. Florença não pôde tolerar seu filho mais nobre e o expurgou. O que insistiu demasiado na beleza dos lírios e na insustentável leveza de Deus foi levado a experimentar o peso inclemente da cruz.
Se há algo de ruidosamente libertador na graça é que ela destece o peso do mundo; desfaz sem recato os nós mais admiráveis que supostamente sustentam e vivificam a trama humana: méritos e privilégios, posses e hierarquias; classes, castas, pátrias, idéias, deuses. Tudo em farrapos. E o homem reconduzido a sua nua humanidade, já sem o peso e sem o abrigo dos milenares castelos de pedra.
O paradoxo e o escândalo já foram mencionados: ao destramar o peso do mundo o arauto da graça será por ele esmagado de um modo particularmente atroz; por desatar os nós da inclemência sua face nua conhecerá o ultraje. Moído pelo peso iníquo do mundo o poeta se verte ele próprio em poesia, ele próprio na agulha avessa e vertiginosa que sangrará as torres desse século – e concederá a todos um novo sopro, e com ele a esperança de um reino de leveza e suspensão.
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