Começo este texto
com uns 15 anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que outdoors eram
permitidos em São Paulo, alguém pagou uma fortuna para espalhar vários deles em
avenidas da cidade com a mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus. Povo de Deus,
declare isso”.
Rumino o recado desde então. Represei qualquer reação à bobagem
estampada publicamente; hoje, por algum motivo, abriu-se uma fresta em uma
comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil
tornar-se evangélico. Antes explico: eu gostaria de ver o Brasil permeado com a
elegância, solidariedade, inclusão e compaixão do Evangelho. Mas a mensagem
subliminar dos outdoors, para quem conhece a cultura do movimento evangélico, é
outra. Os evangélicos sonham com o dia em que cidade, estado e país se
convertam em massa, e a terra dos tupiniquins tenha a cara de suas
denominações.
Afirmo que o sonho é que haja um “avivamento” religioso que leve
uma enxurrada de gente para os templos evangélicos. Não reside entre os
teólogos do movimento qualquer desejo de que valores cristãos influenciem
a cultura brasileira. Eles anelam tão somente que o subgrupo, descendente
distante dos protestantes, prevaleça. A eles não interessa que haja um veloz
crescimento numérico entre católicos romanos; que ortodoxos sírios, russos,
armênios ou gregos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem que
virar “crente”, com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na
madeira).
Avanços numéricos de evangélicos em algumas áreas já dão uma boa
idéia de como seria desastroso se acontecesse a tal levedação radical do
Brasil.
Imagino uma Genebra calvinista brasileira e tremo. Sei de grupos
que anseiam por um puritanismo não inglês, mas moreno. Caso acontecesse, como
os novos puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu?
Respondo: seriam execrados como diabólicos, devassos e pervertedores dos bons
costumes. Não gosto nem de pensar no destino de poesias sensuais como
“Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do Chico. Um Brasil evangélico empobreceria,
já que sobrariam as péssimas poesias do cancioneiro gospel. As rádios tocariam
sem parar músicas horrorosas como “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo em
Fé”.
Uma história minimamente parecida com a dos puritanos
calvinistas provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios. Novos Torquemadas
seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes. Quem,
entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos Drummond de
Andrade?
Como ficaria a Universidade em um Brasil dominado por evangélicos?
Os chanceleres denominacionais cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que
se desqualificasse Charles Darwin como “alucinado inimigo da fé”. Facilmente se
restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória em faculdades de
medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria dos hereges
loucos. Derridá nunca teria uma tradução para o português. O que dizer de
rebeldes como Mozart, Gauguin, Michelangelo, Picasso? No máximo, seriam
pesquisados como desajustados. Ganhariam rótulos para serem desmerecidos a
priori como loucos, pederastas, hereges.
Um Brasil evangélico não teria folclore. Acabaria o
Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam barulhentas. A
alegria do futebol morreria; alguma lei proibiria ir ao estádio ou ligar
televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada de várzea, aconteceria quando?
Haveria multa ou surra para palavrão?
Um Brasil evangélico significaria que o fisiologismo político
prevaleceu. Basta uma espiada no histórico de Suas Excelências da bancada
evangélica nas Câmaras, Assembléias e Gabinetes para se apavorar. Se, ainda
minoria, a bancada evangélica na Câmara Federal é campeã em faltas e em
processos no STF, imagina dominando o parlamento.
Um Brasil evangélico significaria o triunfo do “american way of
life”, já que muito do que se entende por espiritualidade e moralidade não
passa de cópia malfeita da cultura estadunidense. Obcecados em implementar os
“valores da família”, tão caros ao partido republicano dos Estados Unidos,
recrudesceria a teologia de causa-e-efeito, cármica, do “quem planta, colhe”.
Vingaria o sucesso como aferidor da bênção de Deus.
Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja
Católica. Uma nova elite religiosa (os ungidos) destilaria maldição contra os
“inimigos da fé”, os “idólatras”, os “hereges”, com mais perversidade do que
aiatolás iranianos. Ficaria mais fácil falar de inferno e mandar para lá todo
mundo que rejeitasse algumas lógicas tidas como ortodoxas.
Cada vez que um evangélico critica a Rede Globo eu me flagro
perguntando: Como seria uma emissora liderada por evangélicos? Adianto:
insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.
Prefiro, sem pestanejar, os textos do Gabriel Garcia Márquez, do
Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge
Amado, a qualquer livro da série “Deixados para Trás” do fundamentalista de
direita, Tim LaHaye. O demagogo Max Lucado (que abençoou a decisão de Bush
bombardear o Iraque) não calça o chinelo de Mário Benedetti.
Toda a teocracia um dia se tornará totalitária. Toda a tentativa
de homogeneizar a cultura precisa se valer de obscurantismo. Todo o esforço de
higienizar os costumes é moralista e hipócrita.
O projeto cristão visa preparar para a vida. Jesus jamais
pretendeu anular os costumes de povos não-judeus. Daí ele celebrar a fé em um
centurião, adorador no paganismo romano, como especial e digna de elogio.
Cristo afirmou que, entre criteriosos fariseus, ninguém tinha uma
espiritualidade tão única e bela como daquele soldado que se preocupou com o
escravo.
Levar a Boa Notícia – Evangelho – não significa exportar
cultura, criar dialeto ou forçar critérios morais. Na evangelização, fica
implícito que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar,
encenar, como sempre fizeram. O evangelho convoca à pratica da justiça; cria
meios de solidariedade; procura gestar homens e mulheres distintos; imprime em
pessoas o mesmo espírito que moveu Jesus a praticar o bem.
Há estudos sociológicos que apontam estagnação quando o
movimento evangélico chegar a 35% da população brasileira. Esperemos que sim.
Caso alcançasse a maioria, com os anseios totalitários e teocráticos que já
demonstra, o movimento desenvolveria mecanismos para coibir a liberdade.
Acontece que Deus não rivaliza a liberdade humana, mas é seu maior
incentivador.
Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim
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