"O ESPAÇO URBANO TROUXE CONSIGO A EMBALAGEM E O LIXO DOS PRODUTOS DE MERCADO."
A habitação dos seres humanos em comunidades
urbanas é um processo irreversível. Intensificado a partir da Revolução
Industrial do século 18, o fenômeno da urbanização logo se mostrou irreversível
– 80% da população brasileira, por exemplo, vive nas cidades. E, no espaço
urbano, a vida vai se tornado atrativa e ao mesmo tempo complexa. As cidades
modernas são um encanto tecnológico: aviões cruzam os céus acima de monumentais
blocos de apartamentos; trens e metrôs atravessam trilhos em alta velocidade,
enquanto os shoppings, templos suntuosos do consumo, viraram espaços de
convivência que exercem uma atração irresistível.
Ao mesmo tempo, o espaço urbano trouxe
consigo a embalagem e o lixo dos produtos de mercado. O mundo urbanizado
aglutinou e incrementou a violência, acentuando a miséria e popularizando a
fome. As metrópoles concentraram a riqueza e criaram novos atores sociais. A
criminalidade, fenômeno decorrente das desigualdades e da cegueira social, é um
câncer que cresce sem controle nos grandes e pequenos espaços urbanos, acuando
seus habitantes e criando guetos impenetráveis ao poder público. E, neste mesmo
espaço, homens e mulheres buscam viver com dignidade, mas são impedidos pelos
poderes e potestades deste século.
A urbis vai
acentuando o individualismo. Na era do narcisismo e da exaltação do ego, cada
indivíduo busca uma maneira de existir sem que outros seres humanos lhe
perturbem. A automatização cada vez mais distancia possíveis diálogos. Por
outro lado, as relações estão fundamentadas na competitividade e no lucro. A
própria forma de organização da vida urbana está submetida a regras de produção
e consumo. Desse modo, a sociedade urbana divide-se entre os que produzem e
possuem poder de compra de um lado; e de outro, aqueles que vivem à margem do
sistema econômico. Toda tecnologia é validada, desde que a serviço do capital,
para impor a ideologia do consumo.
Nenhum outro contexto mostra de maneira mais
clara a divisão entre ricos e pobres que as cidades. E estes lados opostos nem
sempre são geográficos. No lado dos abastados, encontramos ruas e avenidas bem
pavimentadas, ótimos hospitais e as melhores escolas, bem como casas suntuosas
e condomínios exclusivos. Já na banda pobre, encontramos aglomerados
habitacionais sem o mínimo de saneamento, becos e ruelas de difícil acesso,
escolas abandonadas e postos de saúde sucateados. Nas periferias, homens,
mulheres e crianças sobrevivem muitas vezes em condições de carência total. O
lado dos excluídos, ou, melhor, os sem lado algum – os “sem eira nem beira” –,
estão à margem, à beira: à margem dos direitos, à margem da educação, à margem
do trabalho, à margem da dignidade. À beira da fome.
No entanto, esses são seres que parecem mais
humanos que os habitantes das zonas douradas. Vivem à margem da
competitividade, mas beirando a solidariedade. À margem da acumulação, mas
beirando a partilha. À margem do lucro, beiram a gratuidade. À margem do
individualismo, mas perto da fraternidade. A ideologia de consumo reboca
consigo seus ídolos por meio das religiões organizadas, trazendo de volta
deuses que, na natureza essencial, são não-deuses. Só existe um Deus. A
idolatria é qualquer sistema, seja econômico, político ou religioso, que nos
desvia de Deus e consequentemente nos distancia da fraternidade e do amor entre
as pessoas. Enquanto Deus propicia vida para todos, os ídolos geram destruição,
violência e morte.
O ídolo de consumo requer que seus adoradores
produzam e produzam, saqueando irresponsavelmente a natureza. O ídolo de
mercado exige o sacrifício dos que não consomem seus produtos – os pobres, os considerados
subumanos pelos devotos da religião materialista de mercado.
E a Igreja no mundo urbano, aquela que atua
na mesma ambiência desse consumo desenfreado? Ela corre o risco de ser
“mundanizada”, ou seja, de cair na tentação de se organizar segundo os dogmas
da sociedade urbanizada: a crença no poder da tecnologia, na capacidade
produtiva, na maior valorização nos resultados sacrificando sua fidelidade ao
Evangelho e pondo em risco sua integridade de expressar a natureza singular do
povo de Deus. Por outro lado, a Igreja pode renovar sua aliança com o Evangelho
de Jesus Cristo e os valores do seu Reino – e orar para que esse Reino venha
através de suas comunidades de fé. Seu Reino é de justiça e paz.
A oração ensinada por Jesus fala de “Pai nosso” e de “pão nosso”. Ora,
pão é um bem material; logo, pode ser acumulado ou socializado. Na sociedade de
consumo, ele é a materialização do ídolo que só os consumidores possuem. Por
isso, a crise de fome no mundo é uma questão básica de idolatria ao bem de consumo.
E a crise econômica é a desarmonia dos ídolos sem neurônios. Tornem-se
semelhantes a eles os que os fazem e os seus adoradores. Cabe à Igreja a tarefa
de se converter a Deus e resistir ao sincretismo materialista da religião de
mercado.
Carlos Queiroz
fonte: http://prcarlosqueiroz.blogspot.com.br/
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