segunda-feira, 11 de agosto de 2014

FÉ E CRENÇA

segunda-feira, agosto 11, 2014 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments

Jacques Ellul

De um único verbo, crer, originam-se dois subs­tan­ti­vos que repre­sen­tam ações radi­cal­mente opostas: crença e fé. Porém quando quero usar uma forma verbal para expressar a minha fé tenho ainda de usar crer, a não ser que escolha uma fórmula ainda pior, ter fé.

A crença provê respostas a nossas perguntas, a fé nunca o faz. Cremos para encontrar segurança, solução, uma resposta para os nossos ques­ti­o­na­men­tos. As pessoas creem para desen­vol­ve­rem para si um sistema de crenças. A fé (a fé bíblica) é com­ple­ta­mente diferente. O propósito da revelação é fazer com que ouçamos as perguntas, e não suprir-nos com explicações.

A fé, em primeira instância, é ouvir, como Barth tão fre­quen­te­mente nos faz lembrar. A crença fala e fala, atola-se em palavras, interpola os deuses, toma a ini­ci­a­tiva. A fé requer um posi­ci­o­na­mento intei­ra­mente oposto: a fé espera, permanece atenta, colhe sinais, sabe o que fazer das parábolas mais delicadas; ela ouve paci­en­te­mente o silêncio até que o silêncio seja pre­en­chido pelo que ela toma sendo a inques­ti­o­ná­vel palavra de Deus, palavra da qual se apropria.

A fé isola o indivíduo; a crença, (qualquer que seja, inclusive a cristã) ajunta pessoas. Na crença nos vemos unidos a outros na mesma corrente ins­ti­tu­ci­o­nal, todos ori­en­ta­dos em direção ao mesmo objeto de crença, com­par­ti­lhando das mesmas ideias, seguindo os mesmos rituais, arrolados na mesma orga­ni­za­ção, quer seja religiosa ou social, falando o mesmo dialeto. A crença age como apa­zi­gua­dora na sociedade, ela é a chave para o consenso que buscamos, o defi­ni­tivo e há muito pro­cla­mado como neces­sá­rio elemento essencial da vida comunal. A fé sempre trabalha de maneira exa­ta­mente oposta. A fé indi­vi­du­a­liza; ela é sempre e exclu­si­va­mente uma questão pessoal. Fé é o rela­ci­o­na­mento pessoal com um Deus que se revela como uma pessoa. Esse Deus sin­gu­la­riza a pessoa, coloca-a à parte, e confere a cada pessoa uma iden­ti­dade que não é com­pa­rá­vel à de nenhuma outra. A pessoa que ouve a palavra de Deus é a única a ouvi-la; neste ato ela está separada das outras pessoas, e nele ela torna-se única – im­ples­mente porque o elo que liga esse indivíduo a Deus é único, exclusivo e invi­o­lá­vel. Trata-se de um rela­ci­o­na­mento singular com um Deus único e abso­lu­ta­mente incomparável.


Deus par­ti­cu­la­riza, sin­gu­la­riza a pessoa a quem ele diz “eu te chamo pelo teu nome” (Isaías 45.4). A fé separa cada pessoa das demais e faz única cada uma delas. Na Bíblia a palavra santo significa separado, à parte. Ser santo é ser separado de todos os outros, é ser único em razão da tarefa que não pode ser desem­pe­nhada por nenhuma outra pessoa, tarefa que se recebe pela fé.
A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida. A fé não é o oposto da dúvida, a crença é. Os soldados da crença agem sem ques­ti­o­na­mento de acordo com a lei e os man­da­men­tos. São infle­xí­veis nas suas con­vic­ções, não toleram a qualquer desvio. Na arti­cu­la­ção de sua crença eles imprimem rigor e abso­lu­tismo ao extremo. Refinam inces­san­te­mente a expressão da sua crença e buscam dar a ela uma for­mu­la­ção inte­lec­tual espe­cí­fica num sistema tão coerente e completo quanto possível. Insistem na completa ortodoxia. Codificam rigi­da­mente modos de pensar e de agir.

Isso leva a um elevado grau de efi­ci­ên­cia; o crente é uma pessoa que faz o que precisa ser feito, mas toda a sua atividade é, no fundo, vazia. Os crentes tem uma realidade própria tão pequena que só são capazes de viver e expressar essa realidade dentro de uma unidade con­ven­ci­o­nal­mente esta­be­le­cida. São gente de ajun­ta­men­tos. Os crentes encontram enco­ra­ja­mento e certeza na presença de outros, dependem da certeza de que esses outros realmente acreditam, e assim têm o seu vazio exis­ten­cial pre­en­chido pela vida comu­ni­tá­ria. Mul­ti­pli­car o número de liturgias, com­pro­mis­sos e ati­vi­da­des dá aos crentes a completa satis­fa­ção; rodeados por isso tudo eles não tem neces­si­dade de ques­ti­o­nar a verdade ou realidade da sua própria crença: a atividade os mantém ocupados.

Nesse cenário a diver­si­dade de crenças torna-se into­le­rá­vel. A dúvida e as incer­te­zas são radi­cal­mente des­tru­ti­vas para a crença, e em razão disso a crença não pode tolerá-las. A crença é inimiga da diver­si­dade. A diver­si­dade é sempre uma fonte de novos ques­ti­o­na­men­tos e propicia um ambiente para a auto­crí­tica. Diante da diver­si­dade corremos o risco de nos depa­rar­mos outra vez com a dúvida. Para evitar esse inimigo a crença precisa ser e é de fato rapi­da­mente trans­for­mada em senhas, ritos e ortodoxia.

“Eu creio; ajuda-me na minha incre­du­li­dade” (Marcos 9.24) são as palavras que resumem o que é a fé. A fé me cons­trange acima de tudo a avaliar o quanto não vivo pela fé – o quão raramente a fé enche a minha vida. A fé coloca à prova cada elemento da minha vida e do meu contexto social; não poupa nada nem ninguém. Ela é impla­cá­vel em me levar a ques­ti­o­nar todas as minhas con­vic­ções: cada uma das minhas mora­li­da­des, crenças e posições políticas. A fé me impede de atribuir sig­ni­fi­cado defi­ni­tivo a qualquer área da atividade humana. Ela me desprende e me livra do dinheiro, da família, do meu emprego e da minha capa­ci­dade intelectual.

Ela é o caminho mais certo para me levar a admitir que a única coisa que sei é que nada sei. A fé não deixa nada intacto. A única coisa que a fé me traz é o reco­nhe­ci­mento da minha impo­tên­cia, inca­pa­ci­dade e ina­de­qua­ção. Ela faz com que eu me depare com minha condição de incom­pleto, e des­mas­cara minha incre­du­li­dade (natu­ral­mente a fé é a arma mais certeira e letal contra as crenças em geral).

A crença é con­for­ta­dora. A pessoa que vive no mundo da crença sente-se segura. Ao contrário, a fé con­ti­nu­a­mente nos coloca no fio da navalha. Embora saiba que Deus é Pai, ela nunca minimiza o seu poder. “Quem é este, que até mesmo o vento e o mar obedecem?” (Marcos 4.41). Essa é uma pergunta da fé. Para a crença as coisas são simples: Deus é Todo-Poderoso. Com a crença nós nor­ma­li­za­mos Deus, para que possamos nos sentir con­for­tá­veis diante do seu poder. Apenas a fé é capaz de apreciar a imensidão de Deus e a sua ver­da­deira natureza.

A dúvida, que constitui parte integral da fé, diz respeito a mim mesmo; não diz respeito à revelação de Deus ou ao seu amor nem à presença de Jesus Cristo. Trata-se da dúvida a respeito da efe­ti­vi­dade, até mesmo da legi­ti­mi­dade, daquilo que faço e a respeito das forças a que me submeto na minha igreja e na sociedade. Além disso, a fé coloca a si mesma à prova. Se discirno o tumulto da fé dentro de mim, tenho de adotar como primeira regra não enganar a mim mesmo, não me deixando abandonar à crença indis­cri­mi­na­da­mente. Passarei a ter de sujeitar minhas crenças a uma crítica rigorosa. Terei de dar ouvidos a todas as negações e ataques dirigidos a elas, de modo que possa com­pre­en­der o quão é sólido o objeto da minha fé. A fé não apoia meias-verdades e meias-certezas. Ela me obriga a enfrentar o fato de que não sou nada, e ao fazer isso recebo todas as coisas de presente.

A crença está associada a coisas, a rea­li­da­des e a com­por­ta­men­tos que são elevados ao status de valor defi­ni­tivo, a ponto de serem mere­ce­do­res de que se morra por eles. A crença veste rea­li­da­des humanas finitas para que se apre­sen­tem como sendo rea­li­da­des defi­ni­ti­vas, absolutas e fun­da­men­tais. 

Através da crença tudo que pertence ao âmbito da Promessa, da Palavra de Deus e do Reino é trans­for­mado em efeito colateral, em palavras doces e piedosas, em meios de tornar a vida mais fácil e num processo de auto-justificação.

A fé trabalha de forma oposta. Ela reconhece o Defi­ni­tivo em sua verdade incon­tes­tá­vel, e assim atribui pouca impor­tân­cia a qualquer coisa que se apresente como subs­ti­tuto desse Defi­ni­tivo. Não se trata de olhar para uma fonte externa de uma realidade defi­ni­tiva; o Reino dos céus está agora entre e ou dentro de vocês. A partir de agora você é que constitui o reino. A fé é a exigência de que encar­ne­mos o Reino de Deus agora, neste mundo e nesta época.

Ninguém jamais progride da crença para a fé, muito embora a fé em muitos, com muita frequên­cia, degenere em crença. Você não pode chegar à fé por meio de qualquer religião ou crença antiga, através de alguma vaga exaltação espi­ri­tual ou de emoções estéticas. De um ponto de vista cristão, crer não é melhor do que não crer; ter uma religião não é melhor do que não ter. A crença é uma estrada que não leva à fé. Não é possível trans­for­mar uma convicção pessoal a respeito do valor de rituais num ato de postura solitária diante de Deus. A impli­ca­ção disso é ver­da­deira: toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atra­pa­lham porque satis­fa­zem a nossa neces­si­dade de religião. Elas induzem a escolhas espi­ri­tu­ais que não subs­ti­tuem a fé, impedindo-nos de descobrir, de ouvir e aceitar a fé revelada em Jesus Cristo.

Kier­ke­ga­ard defende a ideia de que, para uma pessoa criada com toda a cultura do Natal, que teve todas as suas pequenas neces­si­da­des espi­ri­tu­ais satis­fei­tas pela igreja, é mais difícil receber o choque da revelação, descobrir o Único, e entrar na noite escura da alma, do que para aquele que não fez outra coisa na vida a não ser buscar con­ti­nu­a­mente sem nunca chegar a uma resposta satis­fa­tó­ria. Pertencer à Cris­tan­dade e a uma das suas igrejas é o principal obstáculo para alguém tornar-se um cristão ver­da­deiro. Não existe caminho que leve de um pouquinho de religião (de qualquer tipo) a um pouquinho mais e final­mente à fé. A fé destrói toda a religião e tudo que enten­de­mos como espi­ri­tual. Por outro lado, a passagem da fé para a crença é possível e uma ameaça constante. É o caminho do retro­cesso ao qual a igreja e vida cristã estão sempre sujeitos. A fé está cons­tan­te­mente dege­ne­rando em múltiplas crenças. Nenhum termo expressa melhor essa mudança imper­cep­tí­vel do que “ter fé”. Quando nós tomamos posse da fé, quando alegamos sermos pro­pri­e­tá­rios dela, natu­ral­mente estamos pensando que podemos dispor dela do modo que dese­jar­mos. A única coisa que temos o direito de dizer é “a fé me tem”. Todo o resto é mera crença.

Fé não é nem crença nem cre­du­li­dade. Não é uma aquisição razoável nem um feito inte­lec­tual; é mais a conjunção de uma decisão defi­ni­tiva com uma revelação, e convida-me a efetuar hoje a encar­na­ção da realidade última, o Reino de Deus presente entre nós. Sou intimado por uma Palavra que é eterna, universal e pessoal aqui e agora. Aceitar a intimação. Dispor-se a agir de forma res­pon­sá­vel, entrando numa aventura ilógica, sem saber sua origem nem o seu fim. Assim é a fé.

A apo­lo­gé­tica tenta provar que o cris­ti­a­nismo responde às perguntas da huma­ni­dade, que ele é ver­da­deiro e superior às outras religiões. Fica evidente que isso limita nossa discussão ao nível religioso. Somos capazes de demons­trar que o cris­ti­a­nismo pode conduzir um debate razoável. Ocorre porém que esses debates entre inte­lec­tu­ais são total­mente estéreis; um jamais chega a convencer o outro. Nenhum apologeta chegou a trazer um incrédulo para a fé, mesmo os que sabiam que haviam vencido a retórica do adver­sá­rio. A abordagem meramente lógica e inte­lec­tu­a­lista leva a um beco sem saída. O intelecto não é capaz de invocar ou demons­trar o caminho da fé.

A crença é um refúgio e um escape da realidade. Em nossa busca natural por proteção nos agarramos a ela como uma garantia ou uma apólice de seguros. Radi­cal­mente oposta à crença é a fé. Fé é assumir riscos, deixar para trás segurança e tran­qui­li­dade, desprezar garantias: é pisar, como o discípulo, para fora do barco no mar da Galileia. Se vivemos pela fé, não há neces­si­dade de implorar que ele nos salve do perigo. Torna-se sufi­ci­ente saber que ele está ali, mesmo que o perigo se mostre mortal; o que quer que o amor de Deus queira fazer ou esteja fazendo em nós será feito, não importa o quê.

Por que crer? Usando “crer” no sentido de “par­ti­ci­par da fé”, não temos nenhum resposta. Acreditar porquê? Com vistas a quê? Para realizar o quê? Para conseguir o quê? São questões sem sentido. Cremos por razão nenhuma. Não existe razão objetiva para a fé; a fé tem de ser vivida. A fé não tem origem ou objetivo. No momento que admite qualquer objetivo ela deixa de ser fé. Se você crê em Deus para ser protegido, coberto, curado ou salvo, então não é fé, porque a fé é gratuita. Isso vai parecer chocante, espe­ci­al­mente para os pro­tes­tan­tes, que falaram tanto de salvação pela fé, da fé como condição da salvação, que chegaram a dizer “você crê, por isso será salvo”. Mas temos de ficar voltando à fé e a sua gra­tui­dade. Se Deus ama e salva a huma­ni­dade sem pedir preço algum, ele quer a con­tra­par­tida de ser crido e amado sem propósito algum; Deus quer ser crido e amado sem que seja por mero interesse pessoal, sim­ples­mente por nada.

Isso é escandaloso, e ainda assim tão fácil de compreender se con­si­de­rar­mos o amor. No momento em que um homem e uma mulher se amam por alguma razão concreta, qualquer que seja, dinheiro, prestígio, beleza ou posição, o amor deixa de ser. O amor é sem causa e sem inte­res­ses pessoais; o amor é sem razão.

A fé é uma constante ação recíproca; ela nunca fica estagnada ou se acomoda. Não se pode encarnar a fé de um modo estático e defi­ni­tivo. A fé é um perene novo ponto crítico. A fé portanto é a contínua presença da tentação e uma visão cada vez mais clara da realidade. Ela implica na crítica à religião cristã, às missões civi­li­za­do­ras, aos códigos morais cristãos impostos de fora; crítica a uma verdade cristã que exclua rei­vin­di­ca­ções sobre si de qualquer outra área da cultura humana. A fé é o ponto de ruptura, não com os nossos com­pa­nhei­ros humanos, mas com as religiões. A fé é levada a pros­se­guir em criticar, julgar e radi­cal­mente rejeitar todas as rei­vin­di­ca­ções reli­gi­o­sas humanas. Pre­ci­sa­mos ser cau­te­lo­sos nesse ponto. Não são pessoas que estão sendo julgadas ou cri­ti­ca­das aqui; a vontade de poder das pessoas e a expressão disso na forma de religião é que é criticada, julgada e rejeitada. Mas a crítica da religião feita pela fé pode estar enraizada apenas na sua crítica de si mesma.

A fé me leva a tomar parte de tudo, e ao mesmo tempo me mostra tudo sob uma luz que não é a razão, a expe­ri­ên­cia ou o senso comum. Não se trata de uma operação inte­lec­tual, é sim uma atitude exis­ten­cial. A fé traz a luz a nova pessoa mani­fes­tada em amor e lucidez.

Hoje em dia a fé dos cristãos na igreja se desen­ca­mi­nhou. A sua obsessão com o conteúdo da sua fé (teólogos dis­cu­tindo termos técnicos) ao invés da paixão pelo movimento e pela vida da fé, acabou desen­ca­de­ando a nossa crise mundial. Mas o imutável permanece imutável. O Último, o Não-Condicionado, o Total­mente Outro não mudou. A fé é nossa res­pon­sa­bi­li­dade de fazer com que o Trans­cen­dente, o Não-Condicionado, o Total­mente Outro Ser, torne-se uma realidade ativa dia após dia em nosso contexto, hoje onde quer que esti­ver­mos. A fé só move montanhas quando fala ao oni­po­tente criador – quando me sujeito a ouvir a palavra da fé.



Extraído de Fé Viva: Crença e Dúvida num Mundo Perigoso. San Francisco: Harper and Row, Publishers, 1983.



Tradução: Paulo Brabo


Revisão: L. Ivan Volcov


0 comentários:

Postar um comentário