quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O CULTO AO TRAUMA DE EXISTIR!

quarta-feira, fevereiro 22, 2012 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments

Certas realidades da vida — e aqui falo das implacáveis, e, portanto, inevitáveis —, são as mais qualificadas expressões e ilustrações do significado do autoengano humano conforme suaatual construção na alma humana.


Por exemplo, todos os seres humanos cedo sabem que um dia irão morrer!...

Hoje, no entanto, tal certeza não existe como admissão natural; posto que exista de modo psicologicamente e subjetivamente negado para grande parte das pessoas no mundo urbano/moderno/ocidental.

De fato, no passado, logo, logo se sabia... Sabia-se que nossos avós morreriam, ou que tendo sido antes importantes para a família, já se tinham ido..., e isso antes mesmo que chegássemos a nascer; assim como também se sabia depois de uns poucos anos — e apenas se a morte prematuramente não impusesse tal realidade à consciência da criança como fato/perda... — que nossos pais também haveriam de um dia morrer; o mesmo acontecendo a todos os demais seres humanos... E assim era pelo menos em tese [...], em razão de que as pessoas tratavam o morrer com familiaridade simples quando ele acontecia [...], especialmente se seguisse o fluxo natural dos anos; ou seja: na velhice.

Além disso, as crianças eram expostas aos funerais, os quais, quase sempre, aconteciam no ambiente da casa, para o qual todos os parentes e amigos vinham [...] a fim de velarem e reverenciarem aquele ente amado que partira. Desse modo, pelo menos do ponto de vista da admissão da realidade da morte, as crianças e os adultos estavam muito mais preparadas do que hoje para a inevitabilidade da morte.

Sim; poder-se-ia sofrer, mas sabia-se que era assim mesmo que as coisas eram...; poder-se-ia evitar tais conversas, em algumas famílias, mas não se criava uma fuga temática deliberada de tal realidade; posto que todos soubessem que morrer era inevitável; embora, na pratica, a alma, na maioria das vezes, vivesse sem contar com aquela possibilidade como risco aflitivo do cotidiano.

Do mesmo modo se sabia que os filhos iriam crescer e partir; e, em algumas culturas, havia data predeterminada para que isto acontecesse; e, quando o partir não significasse uma grande mudança geográfica, seria minimamente uma mudança de status em relação aos pais; posto que chegasse a hora do filho [a] tornar-se adulto para si mesmo e para o mundo. Em muitos casostal tempo de emancipação inevitável, implicava em passar a morar longe; e todos estavam cônscios de que assim seria; embora, na maior parte das famílias, especialmente as mães buscassem viver sem muito pensar naquele dia, até que ele chegasse... Todavia, em geral, não havia nenhum trauma que se chamasse natural em relação a essa sequencia da vida.

Adoecer também era parte simples do existir; em qualquer tempo, idade ou fase da vida. Do mesmo modo em que se sabia que filhos poderiam “não se criar”, e, assim, morrerem prematuramente. Era normal ouvir-se de pais que haviam gerado 12 filhos, mas que apenas oito haviam “se criado”; posto que os demais tivessem morrido antes da hora, fosse por doença, acidente ou qualquer outra forma de intervenção da existência.

As mortes do avô ou da avó, por mais saudosos que se tornassem, também era parte da hora, do tempo, da estação; ou seja: do fluxo natural da existência.

De umas décadas para cá, no entanto, tem-se tentado afastar o fato da morte da percepção de todos, especialmente das crianças e adolescentes; posto que morrer, ainda que seja um fenômeno inevitável, tenha se tornado,psicologicamente, objeto de uma atitude de evasão quanto à inclusão da sua realidade como fato simples, natural e inerente ao mero existir.

O que se nota é que o fenômeno urbano [com suas complexificações], associado ao culto à psicologia do trauma da alma, fez com que todos esses temas sejam tratados em estado quase permanente deautoengano em todas as famílias e almas humanas.

Prova disso é o modo como se trata o assunto quando alguém fala em morte. Sim, logo alguém diz: “Vira essa boca pra lá!”; ou, então, se questiona com reprovação: “Que papo é esse?”; e se houver criança presente no ambiente, inevitavelmente alguém ou muda de assunto com um olhar civilizado de reprimenda a quem introduziu o tema; ou mesmo diz aos pequeninos: “Não ouçam o que ele [a] está dizendo; ele [a] está brincando!

Ora, a morte não tem que ser tratada com indiferença jamais, mas com naturalidade sempre; mesmo a morte que aconteça como um acidente ou um anacronismo; posto que existir é estar dentro do ambiente da possibilidade frequente do morrer...

Entretanto, não é mais assim; sendo esta a razão pela qual as pessoas fiquem tão devastadas ante a morte.

Hoje, o que se vê para todos os lados, são casais em tratamento de depressão grave até anos depois de terem perdido um filho que nem chegou a nascer... E se tiver nascido e sido levado na infância, o trauma para alguns pais parece ser de um poder tão devastador que, para alguns casais, não existe nem mesmo mais a possibilidade de que eles vivam juntos como casal [...] em razão da morte do filho [a] que lhes era comum. Então, divorciam-se em face da morte!

Em uma escala não tão abrangente ou generalizada — porém muito presente na classe média e entre os ricos — está a realidade de que os filhos vão crescer e sair de casa. Assim, com o prolongamento dos cursos acadêmicos obrigatórios, adia-se como se pode tal realidade, a qual, no passado, até em razão dos estudos se impunha cedo na existência.

O fato existencial simples é que a psicologia e a urbanidade com seus complexismos [...] desenvolveram um processo de evasão humana de tais naturais fatos do existir.

Psicologia enfraqueceu a alma humana com o seu culto profissional ao trauma como um poder devastador a ser “tratado”, “trabalhado”, “classificado”; e [ou] devidamente “medicado” e “processado”.

Já a Urbana/Modernidade — com seus recursos médico/hospitalares, ou mesmo com os meios científicos de prolongamento da existência — sendo isto também vinculado a uma grande expectativa redentiva e salvadora que se atribui à ciência médica —, desenvolveu uma expectativa falsa sobre a vida; de um lado hipertrofiando o significado traumático das perdas como traumas, e, de outro lado, pela mesma razão, fragilizando de modo horroroso a alma humana para tais enfrentamentos naturais; os quais, mais cedo ou mais tarde, sejam inevitáveis.

A realidade simples é também esta: a humanidade que tem acesso aos meios de comunicação e aos recursos da modernidade [...], existe em estado de alienação e autoengano sobre o significado natural da morte, da saída dos filhos de casa, do desenvolvimento natural dos filhos; e, portanto, existe em estado de culto ao trauma; e mais do que isto: em estado de fuga ou de tratamento da dor...

Assim, até a menstruação da mulher se tornou algo novo para o mundo, para a família, para as dinâmicas relacionais do casamento, etc... — depois que a TPM se tornou um direito minimamente semanal ao surto e ao descontrole justificado.

O mesmo se pode dizer da aposentadoria; a qual, no passado, era ambicionada e almejada como premio ao envelhecimento; tempo no qual se curtia o ócio do lazer como coroamento do trabalho de toda uma existência; mas que, hoje em dia, chega como punição pelo envelhecer; e isto não pela alegria de trabalhar, mas como pânico da velhice e da morte; ou até como perda de significado social que o “estar na ativa” supostamente confere como status na modernidade des-significada de sentidos mais profundos de ser para a alma humana.

Também existe em tal pacote traumático a negação do envelhecimento, o qual se busca adiar ou mesmo nem nele pensar, mediante “cirurgias plásticas”, ou através da negação da idade, ou da adolescentização da velhice; fato este [o envelhecimento] que produz a assustada fragilização psicológica dos mais civilizados [...] ante os agentes naturais da existência [agora interpretados como traumas]; o que produz gerações cada dia mais antinaturais frente aos fatos sabidos e simples da vida.

Como já disse antes a impressão que me dá por vezes ao atender e ouvir as pessoas, e também ao observar aquilo que as “traumatiza” de modo “devastador”, é que estamos como que vivendo numa espécie de existência de game, de jogo de computador, de uma busca permanente de uma vida de desenho animando, ou mesmo de um mundo ao estilo cibernético do “Ambiente Second Life”.

A constatação que daí decorre implica também na observação do enfraquecimento da alma humana; cada dia mais despreparada para lidar com os fatos da existência sem transformá-los em “trauma devastador”.

Viver, cada vez mais, implica em existir em crise de tudo e com trauma de quase tudo!

Isto porque, além do culto ao trauma [legado da Psicologia], existe-se também em estado denegação da natureza das coisas [...]; bem como, do mesmo modo, vive-se em estado de imersão na existência sem nenhuma graça de transcendência, o que faz com que a morte e os demais fatos simples da vida, sejam tratados o tempo todo como crises traumáticas hipertrofiadas.

Ora, a gente vê pessoas sendo tratadas psicologicamente quanto à morte ou o sumiço de cães domésticos, de pets familiares, e de quase tudo que, estado vivo, possa morrer ou desaparecer. Tamanha é a banalidade de tal estado de fragilidade!

Devo também acrescentar que a caracterização do Bulling faz com que crianças hoje fiquem mais traumatizadas por outras crianças na escola do jamais antes. Sim, pois, em todas as épocas, crianças foram molestadas e chateadas por outras crianças nos ambientes públicos ou escolares. Hoje, porém, tal importunação ou violência — das quais na minha geração quase ninguém escapou, mas passou por elas quase sempre sem trauma —, demanda assistência especializada e tratamento prolongado; não que o Bulling não tenha que ser enfrentado mesmo e com energia; porém, não com a superlativização do seu significado psicológico enfraquecedor e inevitavelmente traumatizante; evitando-se assim o direito traumático que se oferece à criança chateada ou incomodada por tal desconforto ou agressão.

O fato é que a alma humana, mesmo sendo sensível ao extremo, no passado era muito mais forte do que hoje — prova disso é que as grandes evoluções da filosofia, da teologia e da psicologia aconteceram no tempo em que tudo o que hoje é “trauma” [...] não passava apenas da categoria de fatos naturais da vida.

A alma precisa ser sensível sem ser frágil. Sim; a sensibilidade da alma não tem que ser sinônimo de fraqueza da alma!

As almas mais poéticas, mais filosóficas, mais psicológicas, mais sensíveis que já passaram pela História Humana, foram também as mais fortes [...]; e, paradoxalmente, as mais expostas à dor, ao trauma, e à percepção como experiência do desconforto.

Na Bíblia o maior exemplo disso são os salmistas, os profetas e os apóstolos, os quais, submetidos a toda sorte de perdas, traumas e privações, tornaram-se, toda-via, os seres mais fortes que já se conheceu ante a face da morte, das perdas, dos traumas, das angustias, dos desprezos, das rejeições, dos desconfortos e dos anacronismos e casuísmos da existência.

O fato é que este mundo de fugas da realidade e de falta total de naturalidade ante a natureza natural das coisas [perdoe a redundância deliberada nas palavras usadas], acrescido da morte da transcendência do ser e do espírito, tornou-se um ambiente humano traumatizado pelo efeito do autoengano que trata a existência como se ela fosse um game, ou um desenho animado, quando seus personagens não morrem de fato, ou que, quando morram, a gente possa simplesmente reiniciar o jogo [...]; posto que “game over” não significa jamais que o jogo acabou mesmo.

Estou escrevendo isto num domingo de manhã, depois de acordar lembrando-me do tempo que uma hora dessas a minha casa estava cheia de falas e conversas de filhos, e que o almoço seria uma algazarra de brincadeiras e conversas; sendo que hoje, com um dos meus filhos no céu, e os demais todos adultos, a casa está vazia, mas meu coração está também sem nostalgia; ao contrário, está grato pela verificação de que todos eles se tornaram o que nasceram para ser; ou seja: entes separados de mim, que me amam, mas que vivem de si mesmos, enquanto em tenho a chance de envelhecer em estado de contentamento e aproveitamento desta nova estação da minha existência.

E mais: estou feliz também com o fato de que nenhum deles seja frágil ou traumatizável por qualquer coisa ou realidade natural da vida. Nenhum deles é invulnerável, porém, também, graças a Deus, nenhum deles está despreparado para os fatos simples, possíveis e naturais do existir, como a morte dos pais, dos avós, de filhos [não sem dor e dor], dos amigos; e, também, não sem a consciência de que a vida seja assim mesmo!...

Fugir de buscar que assim seja [...], não tratando tudo com naturalidade, cria o autoengano da imortalidade, a síndrome do ninho vazio, o culto ao trauma, e todas as formas de fragilidade que somente tornam a existência, paradoxalmente, um viver de muito mais dor em face da negação do que seja simples e natural [...], e até implacável; ou seja: ante tudo aquilo que se busca negar!

A Bíblia nos ensina com simplicidade na história de Jó que até o que seja de-maisnão seja insuportável; embora nos ensine no mesmo lugar que quase insuportável seja ter que tratar com os amigos que não lidem com os anacronismos e inexplicabilidades dos fatos cruentos e possíveis da existência [...], insinuando eles, os tais amigos, traumaticamente, que cada um dos fatos precise de uma explicação.

No filme “O Auto da Compadecida” [Auto da Compadecida (filme) – Wikipédia, a enciclopédia livre ] um dos personagens repete constantemente a mesma frase a fim de explicar o inusitado da existência; frase essa que, de fato, deveria ser parte não do nosso simplismo, mas da simplicidade do nosso existir.

A declaração é esta:
Ah! Eu não sei como é que foi... Eu só sei que foi assim!

Ora, viver em Deus demanda esta declaração como fato simples da fé confiante. Afinal, o que passar disso é loucura; posto que de fato eu não saiba como as coisas são, e, na maioria das vezes nem mesmo o seu por quê [...]; embora, pela fé, com tranquilidade, eu saiba que elas foram como foram; e, por-tanto, pronto; e, por-tanto, basta!...

Foi Jesus Quem disse a Pedro: “O que eu faço não sabes agora, compreenderas depois...”.

Nele, que não nos criou para chorar além da bem-aventurança dos choros de consolação,

Caio


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