terça-feira, 18 de setembro de 2012

A carta roubada

terça-feira, setembro 18, 2012 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments


– Vocês ouviram o que foi dito.
Mateus 5:21,27,33,38,43




 O que foi dito e o que Jesus disse

A primeira coisa a reconhecer é que você está inteiramente informado de tudo.

Você já foi submetido a toda a verdade, já ouviu o que precisava ser ouvido e sabe o que precisa saber. Nada foi escamoteado da mensagem. Adicionado, com toda a probabilidade – sonegado, nem uma vírgula.

O mais curioso sobre o que tenho a dizer, portanto, é que todo o essencial você já ouviu mais de uma vez. Nenhuma revelação adicional será necessária, nenhuma revelação adicional bastará. Se você busca oráculos e confidências espirituais sabe muito bem onde pode encontrá-los. De mim você não receberá nada que não possa beber diretamente na fonte. Você pode precisar de perseverança e de discernimento; pode desejar companhia e um ombro para se recostar; pode ajoelhar-se pedindo forças para fazer o que precisa ser feito, mas não para que lhe seja revelada alguma coisa que você ainda não sabe.

Não adianta olhar para o céu esperando alguma mandamento adicional. As ordens que nos foram deixadas bastariam para ocupar mais de uma vida, se tivéssemos alguma de reserva.

O Senhor me revelou que você não precisa de revelação alguma.
* * *

Antes de falar sobre Jesus, e é somente a respeito dele que eu deveria estar falando, deixe-me falar sobre os que afirmam que o seguem sem saber do que estão falando.

Deixe-me falar de mim.

Sou uma farsa. Sou um patife, um mentiroso e um canalha. Sou também um santo em muitos sentidos, mas isso apenas distorce a essência da mensagem que eu deveria estar transmitindo. Jesus evidentemente não veio para os santos, os intocados, os poupados, os intocáveis, os que merecem uma categoria à parte. Sua paixão é pelos mistos, os imundos, os misturados, os irremediáveis, os caídos, os violados, os atormentados, os não-resolvidos. Somente a parte de mim não contaminada pelo meu vício de comportar-me como um santinho pode beneficiar-se do impulso libertador da mensagem de Jesus.

Eu, por minha vez, não tinha nada que estar passando a imagem de um santo. Minha tarefa é transmitir a marca de Cristo, não a imagem de santo – e, definitivamente, não é a mesma coisa. Em primeiro lugar, a imagem de santo é tão rasa que qualquer canalha pode passá-la para os outros, mesmo os canalhas menos sutis, como eu. Segundo, nada está mais distante da essência da mensagem de Cristo do que gerar nos outros a impressão de que é preciso ser santo em primeiro lugar para poder beneficiar-se adequadamente da gentil onipresença do Reino e da graça. Na verdade, parte do escândalo da mensagem do evangelho está em sua ousadia de afirmar que ser santo não beneficia ninguém, nem mesmo quem é. Sua ousadia em afirmar que Jesus não tem coisa alguma a dizer ao que não precisa dele.

“Os sãos não precisam de médico” não quer apenas dizer, como estamos acostumados a pensar, que todos são doentes e por isso precisam de Jesus; também quer dizer que as partes de nós que crêem não precisar de intervenção, ou agem como se não precisassem, estão irremediavelmente perdidas.

* * *

Escrevendo aos Filipenses, Paulo chegou a desejar por um momento que um seguidor de Cristo pudesse se ostentar dos feitos e da herança humanos, porque nisso (como deixa claro) ele tinha muito de que se orgulhar.

Eu sei como ele se sente. Se qualquer outro pensa que pode se afiançar no desempenho da carne, eu ainda mais: batizado com água aos dezoito anos, crente filho de crentes, pregador, pianista, regente de coral, professor da Escola Dominical, líder de jovens; quanto ao zelo, ardente defensor e propagador da obra da igreja; quanto à integridade exterior, irreprensível – generoso, casto, honesto, temperante. É para gente como eu que se reservava o título de consagrado. Redigi, montei e imprimi todos os tipos de periódicos, compus hinos, desenhei logotipos e camisetas. Organizei congressos, preguei em retiros e entreguei panfletos. Antes dos 30 anos e sem nunca ter me casado, pastores batiam à minha porta pedindo conselhos matrimoniais; ajudei a salvar um casamento ou dois.

Era um tempo bom e grande parte de mim sente falta dele. Mas, como Paulo depois de sua ostentação, tive de chegar ao ponto em que o que para mim era lucro passei a considerar prejuízo por causa de Cristo. Paulo, na verdade, foi sensato o bastante para abrir mão não só do que era lucro, mas de absolutamente todo o resto. Ele intuía, com acerto, que Cristo não admite acessórios ou periféricos:

Não apenas isso, passei também a considerar todas as coisas como prejuízo diante da superioridade do relacionamento com o meu Senhor Jesus Cristo; por causa dele sofri a perda de todas as coisas, considerando-as mero esterco, para poder ganhar a Cristo (Filipenses 3:8).

Durante a maior parte da vida me mantive ocupado demais na malha sedutora do religiosismo para levar a sério as exigências dessa e de outras advertências. Mas nas brechas da minha atividade, quando era forçado a refletir sobre o que Jesus e seus asseclas insistiam em dizer a cada vez que eu abria o Novo Testamento, restava a nítida impressão que o Filho do Homem estava exigindo de mim muito mais e muito menos do que eu estava fazendo.

Pesou sobre mim o que em psicologia chama-se dissonância cognitiva, a distância entre o que você faz e o que afirma que acredita. De que forma eu podia me afirmar de seguidor de Cristo, se não seguia para onde ele estava indo? Se a doutrina de Cristo era tão insubstituível como eu vivia dizendo que era, talvez fosse hora de colocá-la em prática.

Alguém me acusou de, aos trinta anos de idade, ter mudado minhas convicções. Não é verdade. O que aconteceu foi que assentei finalmente viver em conformidade com elas.

Para poder ganhar a Cristo.

* * *

NOTA PARA MIM MESMO:

Meu leitor é uma sofisticada máquina de justificação. Ele aprendeu tão bem quanto eu a se esquivar.

Assim que termina de ler o que escrevi – algumas vezes antes de terminar – ele coloca em ação poderosos mecanismos conscientes e inconscientes para neutralizar o que eu disse.

O melhor jeito de me passar a perna, ele sabe, é passar a perna nele mesmo e fazer vista grossa ao que estou dizendo. Eu conheço essa técnica: ao mesmo tempo em que me elogia ele finge que estou falando sobre alguma outra coisa. Se digo o quanto a mensagem do Reino requer que sejamos exigentes conosco mesmos, ele dirá “muito oportuno esse texto sobre como devemos ser tolerantes uns com os outros”. Se escrevo o quanto a igreja institucional afastou-se da mensagem e das premissas de Jesus, ele dirá “excelente esse texto sobre como nenhuma igreja é perfeita”.

Ele é liso como um peixe. Eu sei porque não somos diferentes.

* * *

- Bem. Recebi informações pessoais, de fonte muito elevada, de que certo documento de máxima importância foi roubado dos aposentos reais. Sabe-se quem foi a pessoa que o roubou. Quanto a isso, não há a menos dúvida; viram-na apoderar-se dele. Sabe-se, também que o documento continua em poder da pessoa.

- Como se sabe disso? – indagou Dupin.

- É coisa que se deduz claramente – respondeu o delegado – pela natureza de tal documento e pelo fato de não terem surgido certas conseqüências que surgiriam imediatamente se o documento não estivesse ainda em poder do ladrão, isto é, se já houvesse sido utilizado com o fim que este último se propõe.

* * *

Agora, sobre Jesus. As coisas que Jesus dizia.

Em primeiro lugar, deveria parecer evidente que estamos pelo menos tão despreparados para assimilar a mensagem de Jesus quanto seus primeiros ouvintes. Ninguém deve ser ingênuo de pensar que estamos mais prontos para ouvir “amem os seus inimigos”, “façam o bem aos que os odeiam” e “emprestem sem esperar devolução” do que um perplexo judeu do primeiro século.

A diferença – e faz, veremos, toda a diferença – é que, ao contrário dos primeiros ouvintes de Jesus, nós estamos preparados. A sagacidade do temível rabi não nos pega mais desprevenidos. Dois mil anos de tarimba, religiosidade e teologia nos armaram de todo o tipo de subterfúgios. Aqueles pobres fariseus não tinham munição para se esquivar das investidas do Filho do Homem. Nós temos.
Até o ponto em que o que Jesus disse e fez não represente qualquer interferência na nossa pretensão de sermos seguidores dele.
O sistema de defesa que herdamos e aperfeiçoamos é de fato tão eficaz que é automático, inconsciente e indolor. Simplesmente decidimos, por padrão e sem pensar diretamente no assunto, todos casos em que Jesus simplesmente não pode estar dizendo o que diz. Pasteurizamos as suas palavras e suas idéias até que nos apeteçam sem chocar e sem exigir qualquer correção de rumo; aparamos suas arestas até que sua mensagem nos pareça suficientemente palatável, inócua e incontroversa.

É o que se chama de “racionalização”, o mecanismo semiconsciente pelo qual interpretamos o que está sendo dito de forma a que não tenha qualquer conseqüência para nós; um filtro mental pelo qual transformamos o profundamente revolucionário e radical no totalmente irrelevante.

Tornamo-nos, modéstia à parte, peritos nesse tipo de coisa. Anos de prática capacitaram-nos a racionalizar cuidadosamente o que Jesus disse e fez, até o ponto em que o que ele disse e fez não represente qualquer interferência na nossa pretensão de sermos seguidores dele.

* * *

Na história cheia de contrastes do cristianismo, o maior contraste talvez esteja no quão rapidamente os cristãos aprenderam a ignorar as terríveis exigências das palavras e do exemplo do homem que pretendiam seguir. Em que, de todos os heróis cristãos, ninguém tenha sido historicamente menos ouvido e menos levado em conta do que o próprio Jesus.

Mas – se Jesus é como afirmava ser a ressurreição e a luz do mundo, a verdade, o caminho e a vida; se, como ele dizia, não se pode esconder uma cidade edificada sobre o monte – de que forma os cristãos conseguiram manter-se por dois mil anos praticamente a salvo da sua mensagem?

Parte importante do problema pode ter sido, paradoxalmente, a extraordinária e crescente popularidade que o cristianismo foi alcançando ao longo dos seus primeiros três séculos de história. Mesmo antes que um ponto final houvesse sido colocado nos livros do Novo Testamento, a nova e revolucionária doutrina do Caminho se propagava à velocidade da língua por mercados, bazares, casas, sinagogas, teatros, tribunais, palácios e escolas de filosofia.

Em trezentos anos um professor rebelde de um canto remoto do globo era consagrado como o Deus diante do qual se dobrava o imperador de toda a terra.

Nesse sucesso espetacular pode estar a semente do fracasso histórico do cristianismo em representar adequadamente o seu Rei e as idéias que ele defende.

O apóstolo Paulo havia instado Timóteo que transmitisse diligentemente, e através do seu próprio exemplo, o conteúdo da mensagem a discípulos idôneos, capazes de passá-lo adiante sem qualquer deturpação. Porém o discipulado nos moldes estabelecidos por Jesus e pelos apóstolos era um processo lento e exigente, um gargalo que o sucesso formidável do cristianismo primitivo não se podia dar ao luxo de manter. Jesus e sua religião tornaram-se tão populares que as pessoas queriam abraçá-los mesmo antes de saber do que se tratavam e a que vinham.

Naquele tempo, como ainda hoje e pelos mesmos motivos, as pessoas eram convidadas a adotar e defender o cristianismo muito antes de serem ensinadas a discernir por si mesmas as idéias e valores que o Cristo havia adotado e defendido. O cristianismo foi desde cedo produto mais popular do que Jesus; a etiqueta tornou-se instantaneamente mais famosa e mais desejável do que o modelo.

As pessoas se convertiam como moscas, abandonando em massa suas religiões ancestrais em favor da nova e irresistível onda, que combinava os ideais elevados do estoicismo com o misticismo de Platão. De uma hora para outra o empoeirado Filho do Homem tornou-se o herói unânime de todo o mundo conhecido.

Jesus saiu, naturalmente, prejudicado com essa inusitada glória. Como esclarece Borges, “a fama é uma espécie de incompreensão: talvez a pior”.



Paulo Brabo


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