terça-feira, 27 de novembro de 2012

SOBRE VIVER

terça-feira, novembro 27, 2012 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments


Não fabricamos veneno, não sabemos voar, não sabemos farejar, não conseguimos morder outros animais, temos tamanho desengonçado, não enxergamos direito e não ouvimos muito bem, ou seja, tudo o que nos resta é pensar. Compreender o mundo e tirar conclusões. E são justamente essas conclusões e a capacidade que temos de observar o meio ambiente e perceber causa e efeito - precisamente este movimento - que nos leva à consciência que se transforma no pânico. Conseguimos antever que não vamos dar certo.

O medo do ser humano é estrutural. O homem é um animal amedrontado porque tem uma experiência única entre todas as outras espécies: carrega um predador dentro de si mesmo que tem mais consciência do que deve. Morremos de medo, e com certa razão. Temos consciência de tempo e espaço, mas não sabemos de onde viemos, para onde vamos ou porque estamos aqui. Vez ou outra temos alguns insights, mas que nunca nos dão certeza se são verdadeiros. Agarramo-nos em qualquer coisa que nos alivie da tensão, ou do torpor desde a hora em que acordamos, até a hora em que dormiremos novamente.

O medo não é uma invenção contemporânea. Não temos medo, por exemplo, porque hoje em dia é perigoso andar na rua. Temos medo porque somos inteligentes, ainda que ao mesmo tempo e por alguma razão sonhamos em não ter mais medo.

Na busca por compreender e dominar o medo da existência, temos a nossa frente duas estradas que parecem seguir caminhos opostos, embora partam de um mesmo ponto. Ciência e religião. A ciência tenta decifrar a matéria, a religião, por sua vez, busca elevar o espírito, mas a religião nada mais é que uma tentativa utópica de fugir da decadência da matéria; e a exaltação da ciência, mesmo que utilize como método a razão, não passa de mais uma forma de crença.  


No século dezoito, filósofos franceses como Voltaire e Diderot, por exemplo, tinham absoluta certeza de que a religião seria um fenômeno passageiro e que era própria, como queriam os positivistas, de um estágio de percepção metafísica ou teológica de uma humanidade não evoluída, aquilo que o filósofo positivista Augusto Comte chamaria em sua “Lei dos Três Estados” de “infância e juventude da humanidade”. 


Curiosamente, em pleno século vinte e um, na era da “maturidade da humanidade”, do avanço máximo da ciência que mostrou sua imensa capacidade de curar dores e simultaneamente provocar novas angústias, provocando ao mesmo tempo penicilina e bomba atômica, genocídios e antibióticos, percebemos que não temos na ciência, nosso consolador universal. O autor Keith Thomas, no final de seu livro “Religião e Declínio da Magia” (publicado pela Companhia das Letras) diz que se a religião é o espaço das respostas que a ciência não pode fornecer, o papel da religião será eterno, pois a ciência nunca nos poderá tornar eternos. Porém, é da natureza humana e das suas fantasias a tentativa de fugir do sofrimento. Isto é algo que insiste e se repete. O resultado final é que temos muita ciência, temos técnica, temos liberdade, temos democracia, temos religião, mas não é possível afirmar, nem por um triz, que por isso sejamos evidentemente mais felizes.

Somos uma sociedade absolutamente hedonista e incapaz de viver autenticamente ou o sofrimento, ou o tédio, ou seja, sofremos terrivelmente do medo de sofrer, por isso passamos a maior parte do tempo sob o efeito de variadas formas de entorpecentes que nos aliviem da possibilidade de confrontar a dimensão do nosso vazio.

Talvez, uma das definições mais duras sobre o ser humano seja aquela de que nós somos um cérebro que enxerga e faz poesia atado a um tubo digestivo. Somos deuses amarrados a corpos que apodrecem. Então, qual seria o desdobramento de um corpo eternamente jovem para uma alma que vê o envelhecimento como um apodrecimento sem significado? Ora, vivemos em um mundo obcecado pela juventude do corpo, com academias de ginástica, clínicas de cirurgia plástica, cosméticos, botox, etc. Nosso corpo é uma experiência de transcendência avassaladora que nos deixa em pânico, porque não existe nada no mundo que mande mais em nossa vida que o nosso corpo. Com o passar do tempo, vamos percebendo que não mandamos em nosso corpo e sim o contrário. Ele vai criando vida própria, só que é uma vida que não gostamos. Ele vai fazendo coisas e emitindo sinais que rompem com nosso acordo com o cotidiano. Ele nos diz: Agora o seu cotidiano é meu! Ora, esta é uma experiência de transcendência em direção ao nada, que é justamente o que mais nos assombra.

O que nos resta nesse caso são os recursos físico-químicos para deter um pouco a tirania do tempo. Então as pessoas passam a injetar toxina botulínica de vaca no rosto para parecerem mais jovens. O resultado é que passam a dizer “socorro, um incêndio!” e “eu te amo!” com a mesma expressão facial. As plásticas que praticamente não se percebem em ninguém, a malhação permanente, a síndrome que leva homens e mulheres de determinada idade a comprar um carro vermelho ou amarelo, a namorar pessoas mais jovens, a usar gírias e expressões mais dinâmicas, a sair em grupos de pessoas bem mais jovens, são meramente o mesmo medo de sempre. Como todos os animais, passamos pela experiência do medo de morrer. A velhice nos lembra de que esse tempo está mais próximo, mas assim como os velhos, a cada dia que alguém de quatorze anos vive a mais, está também um dia mais próximo da morte. Como diz o provérbio latino, “toda badalada nos fere, a última nos mata”.

O que fazer diante do destino de todos nós? Que resposta dar à ausência de sentido? O que fazer diante desse sopro que se chama vida? Diante de nossa concepção trágica é possível ter esperança? Acredito que o fim das ilusões e dos egoísmos gerados por elas pode significar o encontro com uma vida mais íntegra.

A existência tem se tornado doença. Não é por acaso que a depressão é a grande moléstia do nosso tempo. Talvez tenha a ver com a dificuldade de amar despretensiosamente, porque até o amor como é conhecido e experimentado atualmente guarda em seu cerne um certo egoísmo, e pensar apenas em si mesmo e no seu prazer momentâneo é querer muito pouco da vida. Cada vez mais em nossa época não nos é permitido lidar com tempos longos, com as perdas, com os lutos. Há uma tentativa sempre iminente de reposição (cruelmente proporcional) de objetos e de relacionamentos. O indivíduo contemporâneo é obcecado pelo fantasma da felicidade plena.

Chega uma hora em que essa busca por felicidade, não exerce mais nenhum efeito, pois além de nos mostrar muito mais o que é infelicidade, ao invés de felicidade, é insuficiente para nos livrar do medo. 

Acredito que a felicidade está para além de curtos momentos de euforia, está muito mais ligada ao contentamento, o contentamento que não se acomoda pode ser um agente transformador. Talvez a felicidade esteja relacionada mais ao caminho que ao destino. Não é uma meta. Felicidade não é um estado de espírito, não é produto de sucessivas realizações. Existe uma boa ventura, uma estrada a se percorrer.
Em mundo caótico, onde não há qualquer sentido para nada e em que vivem seres humanos tão fragmentados como nós, não há a mínima possibilidade de se estabelecer felicidade plena.

Minhas noções de felicidade nascem de um conceito antigo e muito conhecido, porém paradoxalmente perdido e esquecido atualmente. É chamado de caminho da graça.

Acredito que feliz é quem descobre diariamente que é menos do que se pensou que era, que encara o sofrimento. Feliz é quem descobre e aceita sua precariedade, sua vulnerabilidade. Feliz é quem já se deparou com a angústia, com a agonia de existir e já chorou por isso. Feliz é quem sabe que não está nem perto de se considerar alguém “bem resolvido”.

Feliz é quem consegue enxergar ao seu lado e ver pessoas na mesmíssima condição de fragilidade que a sua e toma a inesperada atitude de ser misericordioso. Feliz é quem já percebeu que não é o que deveria ser e nem o mundo é o que deveria ser e desenvolve uma fome voraz e uma sede incontrolável por justiça. Feliz é quem se sente aviltado, atropelado pela fatalidade, acaso ou por algo que seja interior a si mesmo. 

Feliz é quem busca ser pacífico, não atribuindo julgamentos a quem quer que seja, que não estabelece competições, mas constrói pontes, porque tem a consciência latente de empate na decadência de todo ser humano. Feliz é quem é “puro de coração por desejar uma só coisa”, como diria Kierkegaard.

Acredito que quem ama alguém, a ponto de sair de si e se por no lugar do outro, sem qualquer interesse pessoal por detrás disso, descobre por acaso o remédio para o medo humano.


Alexandre Verçosa


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