Não fabricamos veneno, não sabemos
voar, não sabemos farejar, não conseguimos morder outros animais, temos tamanho
desengonçado, não enxergamos direito e não ouvimos muito bem, ou seja, tudo o
que nos resta é pensar. Compreender o mundo e tirar conclusões. E são
justamente essas conclusões e a capacidade que temos de observar o meio
ambiente e perceber causa e efeito - precisamente este movimento - que nos leva
à consciência que se transforma no pânico. Conseguimos antever que não vamos
dar certo.
O medo do ser humano é estrutural. O
homem é um animal amedrontado porque tem uma experiência única entre todas as
outras espécies: carrega um predador dentro de si mesmo que tem mais
consciência do que deve. Morremos de medo, e com certa razão. Temos consciência
de tempo e espaço, mas não sabemos de onde viemos, para onde vamos ou porque
estamos aqui. Vez ou outra temos alguns insights, mas que nunca nos dão certeza
se são verdadeiros. Agarramo-nos em qualquer coisa que nos alivie da tensão, ou
do torpor desde a hora em que acordamos, até a hora em que dormiremos
novamente.
O medo não é uma invenção
contemporânea. Não temos medo, por exemplo, porque hoje em dia é perigoso andar
na rua. Temos medo porque somos inteligentes, ainda que ao mesmo tempo e por
alguma razão sonhamos em não ter mais medo.
Na busca por compreender e dominar o
medo da existência, temos a nossa frente duas estradas que parecem seguir
caminhos opostos, embora partam de um mesmo ponto. Ciência e religião. A
ciência tenta decifrar a matéria, a religião, por sua vez, busca elevar o
espírito, mas a religião nada mais é que uma tentativa utópica de fugir da
decadência da matéria; e a exaltação da ciência, mesmo que utilize como método
a razão, não passa de mais uma forma de crença.
No
século dezoito, filósofos franceses como Voltaire e Diderot, por exemplo,
tinham absoluta certeza de que a religião seria um fenômeno passageiro e que
era própria, como queriam os positivistas, de um estágio de percepção
metafísica ou teológica de uma humanidade não evoluída, aquilo que o filósofo
positivista Augusto Comte chamaria em sua “Lei dos Três Estados” de “infância e
juventude da humanidade”.
Curiosamente, em pleno século vinte e
um, na era da “maturidade da humanidade”, do avanço máximo da ciência que
mostrou sua imensa capacidade de curar dores e simultaneamente provocar novas
angústias, provocando ao mesmo tempo penicilina e bomba atômica, genocídios e
antibióticos, percebemos que não temos na ciência, nosso consolador universal.
O autor Keith Thomas, no final de seu livro “Religião e Declínio da Magia”
(publicado pela Companhia das Letras) diz que se a religião é o espaço das
respostas que a ciência não pode fornecer, o papel da religião será eterno,
pois a ciência nunca nos poderá tornar eternos. Porém, é da natureza humana e
das suas fantasias a tentativa de fugir do sofrimento. Isto é algo que insiste
e se repete. O resultado final é que temos muita ciência, temos técnica, temos
liberdade, temos democracia, temos religião, mas não é possível afirmar, nem
por um triz, que por isso sejamos evidentemente mais felizes.
Somos uma sociedade absolutamente
hedonista e incapaz de viver autenticamente ou o sofrimento, ou o tédio, ou
seja, sofremos terrivelmente do medo de sofrer, por isso passamos a maior parte
do tempo sob o efeito de variadas formas de entorpecentes que nos aliviem da
possibilidade de confrontar a dimensão do nosso vazio.
Talvez, uma das definições mais duras
sobre o ser humano seja aquela de que nós somos um cérebro que enxerga e faz poesia
atado a um tubo digestivo. Somos deuses amarrados a corpos que apodrecem.
Então, qual seria o desdobramento de um corpo eternamente jovem para uma alma
que vê o envelhecimento como um apodrecimento sem significado? Ora, vivemos em
um mundo obcecado pela juventude do corpo, com academias de ginástica, clínicas
de cirurgia plástica, cosméticos, botox, etc. Nosso corpo é uma experiência de
transcendência avassaladora que nos deixa em pânico, porque não existe nada no
mundo que mande mais em nossa vida que o nosso corpo. Com o passar do tempo,
vamos percebendo que não mandamos em nosso corpo e sim o contrário. Ele vai
criando vida própria, só que é uma vida que não gostamos. Ele vai fazendo
coisas e emitindo sinais que rompem com nosso acordo com o cotidiano. Ele nos
diz: Agora o seu cotidiano é meu! Ora, esta é uma experiência de transcendência
em direção ao nada, que é justamente o que mais nos assombra.
O que nos resta nesse caso são os
recursos físico-químicos para deter um pouco a tirania do tempo. Então as
pessoas passam a injetar toxina botulínica de vaca no rosto para parecerem mais
jovens. O resultado é que passam a dizer “socorro, um incêndio!” e “eu te amo!”
com a mesma expressão facial. As plásticas que praticamente não se percebem em
ninguém, a malhação permanente, a síndrome que leva homens e mulheres de
determinada idade a comprar um carro vermelho ou amarelo, a namorar pessoas
mais jovens, a usar gírias e expressões mais dinâmicas, a sair em grupos de
pessoas bem mais jovens, são meramente o mesmo medo de sempre. Como todos os
animais, passamos pela experiência do medo de morrer. A velhice nos lembra de
que esse tempo está mais próximo, mas assim como os velhos, a cada dia que
alguém de quatorze anos vive a mais, está também um dia mais próximo da morte.
Como diz o provérbio latino, “toda badalada nos fere, a última nos mata”.
O que fazer diante do destino de todos
nós? Que resposta dar à ausência de sentido? O que fazer diante desse sopro que
se chama vida? Diante de nossa concepção trágica é possível ter esperança?
Acredito que o fim das ilusões e dos egoísmos gerados por elas pode significar
o encontro com uma vida mais íntegra.
A existência tem se tornado doença. Não
é por acaso que a depressão é a grande moléstia do nosso tempo. Talvez tenha a
ver com a dificuldade de amar despretensiosamente, porque até o amor como é
conhecido e experimentado atualmente guarda em seu cerne um certo egoísmo, e
pensar apenas em si mesmo e no seu prazer momentâneo é querer muito pouco da
vida. Cada vez mais em nossa época não nos é permitido lidar com tempos longos,
com as perdas, com os lutos. Há uma tentativa sempre iminente de reposição
(cruelmente proporcional) de objetos e de relacionamentos. O indivíduo
contemporâneo é obcecado pelo fantasma da felicidade plena.
Chega uma hora em que essa busca por
felicidade, não exerce mais nenhum efeito, pois além de nos mostrar muito mais
o que é infelicidade, ao invés de felicidade, é insuficiente para nos livrar do
medo.
Acredito que a felicidade está para além
de curtos momentos de euforia, está muito mais ligada ao contentamento, o
contentamento que não se acomoda pode ser um agente transformador. Talvez a
felicidade esteja relacionada mais ao caminho que ao destino. Não é uma meta.
Felicidade não é um estado de espírito, não é produto de sucessivas
realizações. Existe uma boa ventura, uma estrada a se percorrer.
Em mundo caótico, onde não há qualquer
sentido para nada e em que vivem seres humanos tão fragmentados como nós, não
há a mínima possibilidade de se estabelecer felicidade plena.
Minhas noções de felicidade nascem de
um conceito antigo e muito conhecido, porém paradoxalmente perdido e esquecido
atualmente. É chamado de caminho da graça.
Acredito que feliz é quem descobre
diariamente que é menos do que se pensou que era, que encara o sofrimento.
Feliz é quem descobre e aceita sua precariedade, sua vulnerabilidade. Feliz é
quem já se deparou com a angústia, com a agonia de existir e já chorou por
isso. Feliz é quem sabe que não está nem perto de se considerar alguém “bem
resolvido”.
Feliz é quem consegue enxergar ao seu
lado e ver pessoas na mesmíssima condição de fragilidade que a sua e toma a
inesperada atitude de ser misericordioso. Feliz é quem já percebeu que não é o
que deveria ser e nem o mundo é o que deveria ser e desenvolve uma fome voraz e
uma sede incontrolável por justiça. Feliz é quem se sente aviltado, atropelado
pela fatalidade, acaso ou por algo que seja interior a si mesmo.
Feliz é quem busca ser pacífico, não
atribuindo julgamentos a quem quer que seja, que não estabelece competições,
mas constrói pontes, porque tem a consciência latente de empate na decadência
de todo ser humano. Feliz é quem é “puro de coração por desejar uma só coisa”,
como diria Kierkegaard.
Acredito que quem ama alguém, a ponto
de sair de si e se por no lugar do outro, sem qualquer interesse pessoal por
detrás disso, descobre por acaso o remédio para o medo humano.
Alexandre Verçosa
0 comentários:
Postar um comentário