quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Conto: O ANJO E A MERITOCRACIA

quarta-feira, agosto 12, 2015 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments



Paulo Brabo

"Como alguém pode dizer o que acha justo sem saber os pri­vi­lé­gios que vai ter"

– Vejo que você está com o panfleto na mão – disse o anjo no guichê – e deve ter visto também o vídeo de cinco minutos, então já sabe como funciona. Uma pergunta sua, depois você responde uma pesquisa curta e é liberado imediatamente.

Eu tinha muito mais que uma pergunta, mas fiz que sim com a cabeça.

– Onde – eu disse, do modo mais claro e deli­be­rado que consegui.

– Onde, onde – disse o anjo, e deslizou o dedo sobre a tablet que trazia na mão. – Olha, parabéns, você vai nascer no Brasil, um país muito legal.

– Legal – eu disse.

– Diz aqui que tem a maior cobertura florestal do planeta, uma quan­ti­dade estúpida de recursos naturais, e uma parte da população está entre o 1% mais rico do mundo.

– Legal – repeti, mas agora estava sorrindo.

– Opa, atualizou aqui – ele olhou na tablet – Está igual, só esquece a maior cobertura de florestas do planeta. O resto está igual.

– Muito bem – eu disse, e mordi os lábios antes que mudasse mais alguma coisa.

– Agora a pesquisa, e para sua con­ve­ni­ên­cia tem também uma pergunta só. Estou até já emitindo aqui o seu bilhete de embarque. Tem bagagem pra despachar? Haha, só estou zoando.

– Qual é a pergunta? – eu estava impaciente.


– Como você sabe – e aqui ele deixou a tablet de lado e leu dire­ta­mente de um outro monitor – esta pesquisa foi sugerida por São João Rawls em 2012, para confirmar uma teoria sua. E só tem uma pergunta, que vou te fazer agora. Qual seria a sociedade mais justa para o mundo em que você está para nascer: uma sociedade igua­li­tá­ria ou uma sociedade libertária?

Ergui as sobrancelhas.

O anjo espalmou a mão para que eu não res­pon­desse antes que ele ter­mi­nasse de falar:

– Só pra escla­re­cer, tá, a sua resposta não vai mudar em nada a sociedade que você vai encontrar lá embaixo. A sua resposta pode não fazer qualquer diferença na sua passagem pela Terra, etc, etc, mas se você responder certo vai ganhar pontos aqui no céu.

E para indicar que a bola estava comigo, tirou os olhos do monitor.

– Mais justa, qual seria sociedade mais justa – eu disse. – E qual seria exa­ta­mente a diferença entre essas duas opções que você falou?

– A diferença está em como se determina quem merece o quê. Igua­li­tá­ria é a sociedade que acredita que, como todo mundo é diferente, justo é o mundo em que cada um se beneficia igual­mente dessa variedade. Liber­tá­ria é a sociedade que acredita que, como todo mundo tem direitos e liber­da­des iguais, é justo que cada um se beneficie indi­vi­du­al­mente daquilo que tem de diferente.

– Desculpe, não sei se entendi.

– O liber­tá­rio é o capi­ta­lista, meu amigo. Nesse modelo todo mundo nasce com igualdade de opor­tu­ni­da­des, por isso é justo que as recom­pen­sas a que cada um tem direito sejam deter­mi­na­das exclu­si­va­mente pelo livre mercado. Toda a riqueza é dis­tri­buída por esse critério aí só.

– Ah, correto, se eu nascer numa família pobre vou poder usar as opor­tu­ni­da­des do mercado para me alçar para uma condição melhor, aquela história.

– Exa­ta­mente. A história liber­tá­ria. Que recebe também o nome de meritocracia.

Baixei a voz e me inclinei em direção ao guichê.

– Antes de eu responder você podia olhar aí se eu vou nascer numa família pobre? Ou se vou nascer entre os 1% mais ricos do mundo?

– O Brasil está entre os dez países com a dis­tri­bui­ção de renda mais injusta do planeta mas não, você tinha direito a uma pergunta só e a sua pergunta foi onde.

– Mas alguma coisa básica você vai ter de me dizer pra eu me basear, não? Se eu vou nascer homem ou mulher, me diz só essa que essa é fundamental.

– Desculpe, não posso liberar essa informação.

– A cor da pele, então. Olhando pra mim as pessoas vão dizer que sou branco ou preto?

– Não, não posso.

– Tudo bem. E se eu nascer, sei lá, índio. Quem garante que os índios vão ter no Brasil a mesma opor­tu­ni­dade que os brancos.

– Quem garante – disse o anjo.

– E se eu nascer com habi­li­da­des que o mercado talvez não tenha interesse em recom­pen­sar? Se o meu talento for pra, sei lá, taxi­der­mista, antro­pó­logo, pintor de car­ro­ce­ria de caminhão? E se eu tiver uma ori­en­ta­ção sexual diferente da maioria? E se eu nascer muito feio, meu Deus do céu? Não tem um espelho aqui não?

– E se – disse o anjo.

– Ah, tenha santa paciência! Alguma coisa você vai ter de me dizer, meu anjo. Como alguém pode dizer o que acha justo sem saber os pri­vi­lé­gios que vai ter?

– Essa já é pra­ti­ca­mente uma resposta, já – disse o anjo.

– Tá bom, concordo, ok. Agora olhe aí pelo menos se eu vou nascer com saúde. Se vou nascer com alguma defi­ci­ên­cia, que isso pelo menos eu tenho direito de saber.

– Olha, a infor­ma­ção que estou auto­ri­zado a dar é que você vai nascer nu como todo mundo. Como estamos aqui agora, desse jeito. A garantia é só essa.

– Veja pelo menos se vou nascer na cidade ou no campo, meu Deus. Vai ter água potável na casa onde eu nascer? Comida sem agro­tó­xico? Vai ter livro na casa em que eu nascer, meu Deus do céu? Meus pais vão ter alguma escolaridade?

– Você não está entendendo.

– Você é que não está me enten­dendo, meu amigo. Você não vê que essas coisas que podem afetar o meu futuro estão todas fora do meu controle?Igualdade de opor­tu­ni­da­des? Não sei se vou nascer homem ou mulher, preto ou branco, gay ou hetero, rico ou pobre, criado no iogurte grego ou mal nutrido, bonito ou feio, saudável ou com algum problema. Nada disso é escolha minha ou mérito meu e tudo isso pode deter­mi­nar o meu futuro. De onde, meu amigo, de onde chamar isso de meri­to­cra­cia?

Sem dizer uma palavra e sem mover o rosto o anjo fez menção à fila atrás de mim. Depois olhou-me nos olhos e deixou o dedo flutuando sobre a super­fí­cie da tablet.

– Posso dizer aqui que você respondeu “igualitária”?

Baixei a cabeça.

– Pode. Não, espera. Espera. E se eu mudar a minha resposta quando chegar na Terra, depen­dendo daquilo que eu encontrar por lá. Se eu mudar a minha resposta vou ser punido depois por causa disso?

– Ao final da viagem a gente compara as respostas – disse o anjo – mas é só para fazer um controle. A verdade é que neste universo ninguém é punido por nada; acontece só que cada um tem poder para lesar e fazer sofrer os demais. Se mudar a sua resposta você não vai ser de forma alguma punido: só vai estar punindo outros.

Ele me entregou o bilhete de embarque, e antes que eu saísse do lugar foi chamando o próximo.


Fonte: http://www.baciadasalmas.com/


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