sábado, 5 de outubro de 2013

QUANDO O TEMPO DE ENTERRAR E O TEMPO DE FESTEJAR SE ENCONTRAM: LEMBRANÇAS DO CAMPO.

sábado, outubro 05, 2013 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments

Por Marcelo Quintela

Texto escrito na parede da casa vizinha à do pai do Michael

“O amor tem duas filhas: a raiva e a coragem!”
 Michael nasceu de um estupro. Um aliciamento, na verdade. Um homem bem mais velho engravidou uma jovenzinha, que entregou o bebe a sua mãe; e passado um ano, essa avô destinou o “pacotinho” ao culpado.

No dia em que fomos à casa do pai do Michael buscando noticias

Quando o Michael fez 8 anos sua vida ficou mais difícil do que difícil já podia ser viver no distrito de Oron (Nigéria), um lugar permanentemente enlameado, cheio de ruelas sinuosas de terra batida abertas no meio do mato alto, regado de um cristianismo supersticioso, que exagerou elementos folclóricos, para encher as consciências de medo, e ao final, se apresentar como solução da fantasia que alimenta. É a fé no terror, a idade das trevas em pleno século XXI. Mas terror mesmo foi o fim da vida do Michael.

Seu pai se fez profeta-missionário de uma dessas igrejas malucas e não demorou para o mundo desabar sobre a cabeça do lindo garotinho: podia vir a se tornar um bom estudante, podia um dia sair daquele brejo e tentar a vida na cidade, onde a seu tempo experimentaria o coração palpitando aquela dorzinha gostosa dos enamoramentos da adolescência, e quem sabe, se casaria, se formaria orgulhoso, podia ter filhos… Mas não pôde mais nada. Michael foi arrancado da vida no dia que se tornou uma “crianca-bruxa”. Nenhuma criança é bruxa (lógico!), mas se um sacerdote cheio de crédito na comunidade o rotular assim, já era. Gruda! Para sempre! “Crianças-Bruxas” são diabinhos enrustidos e fazem mal aos que com eles cruzam… (Unicef, 2010).


Da igreja que o condenou a carregar essa cruz, Michael seguiu, forçado pela multidão, para sua via-crucis. Eu conheci a rua na qual ele foi cercado por dezenas de adultos gritando raivosamente palavras de comando, obrigando-o a confessar o status espiritual revelado no julgamento ocorrido naquele “Sinédrio”. Acuado, o menininho o fez: “Eu sou!”.

No dia que o tio acertou sua cabeça com uma barra de ferro, Michael – que não entende o mundo e nem a cabeça dos adultos – se entendeu sozinho de tudo nessa vida, e percebeu que só sobreviveria se fugisse da vila. Fugiu sangrando. Caminhou esfomeado e confuso na escuridão da madrugada. Ele estava nos procurando. Ele sabia como nos encontrar. Rondou por muitas noites a casa do nosso chief, uma espécie de padrinho do Caminho-Nações na Nigéria. E com a cabeça ainda vazando criou coragem e bateu à porta. E então nosso velhinho o trouxe aos braços da equipe. Pela primeira vez, alguém abraçou e acolheu o Michael. Mas foi também a última…

Seus dias conosco foram poucos. A polícia exigiu que seu pai o recebesse de volta e prendeu seu tio, solto depois de interrogado. O Michael comeu, bebeu, recebeu atendimento médico, e foi devolvido. Foi devolvido para a morte. Ele sumiu apesar da nossa vigilância…

Mataram o Michael aos 8 aninhos e ninguém sabe quem foi
. Mataram o Michael e ninguém sabe nem onde jogaram o corpo. Mataram o Michael e a polícia manteve o inquérito fechado. Mataram o Michael e seu pai foi ao culto, sua mãe não chorou, sua avó não se comoveu e nem clamou por justiça. Todos seguiram “em paz” o fluxo de suas próprias trevas.

Agora em setembro faz um ano que o menino desapareceu. Um ano que o procuramos… As vozes das ruas já vinham avisando que ele fora assassinado, mas o Leonardo insistia em continuar preso a uns restos de esperança. Não por culpa, mas por tê-lo deixado escorregar por entre os dedos. Afinal, a Missão é: Salvar “crianças-bruxas”!!! Mas durante a recente expedição “Oásis no Deserto” voltamos à Oron, à casa do terror, e pedimos por uma reunião entre nós, o pai-sacerdote, a mãe jovenzinha e a avô que criou o bebê. Todos juntos numa sala escura, sentados em círculos, cara a cara.


Fomos bem diretos:
“O que aconteceu com o Michael?”; ”Onde está o menino hoje?”; ”Vocês sabem quem o matou?”; ”Grandmother, por que você não o acolheu depois que cacetaram a cabeça dele bem aqui próximo a sua casa? Você tomou conhecimento das acusações contra seu netinho?”; ”Mãe, você procurou por ele? Você o amava?”; ”Pai, quem o matou? Nós sabemos que você sabe!”

Todos se mantiveram calados, com o olhar vago, às vezes debochado. E a avó disse que no dia que o entregou ao pai, há sete anos atrás, lavou as mãos!
Entendemos, então, porque o Michael também não as procurou! Ele não as tinha. Ninguém o amava! A “bruxificação” foi conveniente! Nosso sangue ferveu em meio aquele teatro de cinismo, e, talvez inconscientemente, decidimos que naquele dia o Michael seria sepultado e chorado. Só nós o tínhamos amado nessa vida, e quem ama causa confusão no velório. Quem ama, fica indignado, fica perplexo diante do homicídio. Quem ama deixa o circo pegar fogo para honrar o ente amado, o inocente assassinado!

E assim fizemos!

O Leo “bateu o martelo” e acabou a reunião sem diplomacias: “
Estamos assustados com a paz de vocês. Hoje estamos encerrando nossa procura. Hoje estamos enterrando o Michael diante dos seus executores. Sim, cada um de vocês o matou desde que ele nasceu. Não adianta lavar as mãos!”


Levantamos e fomos lentamente voltando para a trilha que leva aos carros, chorando baixinho.

Mas, de repente, atrás de nós vinham todos eles, brigando e gritando entre si, e até com gente que a gente não tinha nem visto! A avô berrava com o pai palavras de maldição, o pai gritava com a velha e ninguém conseguia sossegar! Vinham atrás de nós, num cortejo de iras, caretas, falas e sentimentos bem diferentes do que testemunhamos minutos antes, quando eles estavam “em paz”…

Agora sim. Bagunçamos tudo! O terror de Deus caiu sobre eles! Manifestaram o inferno que os habita! Em meio à tristeza, sorri sozinho sem nem olhar para trás. Aquela gritaria soou doce aos meus ouvidos e me subiu uma satisfação indescritível de termos feito com que eles sentissem alguma coisa… Qualquer coisa que se sinta. Como assim um pequenino morre e ninguém fica desconfortável? Honramos nosso menino…

Meu luto satisfeito foi interrompido pelo pai que tentava se por ao meu lado naquele caminho estreito que seguíamos em fila. Em sua defesa, ele gesticulava e gritava que nunca tinha odiado o próprio filho. Eu disse a ele que não queria conversar, que estava triste e que não dava crédito a nada que ele vinha dizendo…

Daí, ele se disse insultado por mim, já que eu me mantinha caminhando de costas meneando a cabeça para seu falar frenético. Até que ele conseguiu minha atenção: “Eu sou profeta-missionário do Deus Altíssimo, eu sou o pai do Michael! - esbravejou. Antes que eu pudesse pensar, parei com o ar me saindo forte e quente pelas narinas numa expiração repentina. Estanquei os passos, virei pra ele com o dedo enfiado em sua cara, que se enfiou em meu dedo por causa da forma brusca como me voltei sem que ele parasse de andar, e gritei cuspindo a saliva misturada às lágrimas:
 No, you are not…! NÃO É! Você não é o pai do Michael! Você não é profeta! Se fosse saberia que eu sou! E tenho uma mensagem enviada pelo Pai do Michael. Sim, ele tem Pai! Ele mora com o Pai dele! E o Pai dele, nos céus, está esperando para encontrar com quem matou Seu pequenino! Ele só está esperando, você está me entendendo, homem!?


Saí de mim. E não queria mais sair dali! Saí de mim como fazem as pessoas que são calmas só até a terceira página. Virei bicho. O Leo sumiu e me deixou lá no mundo-à-parte, para evitar descer a mão no missionário, como me revelou depois! Eu já não parava de gritar!

Então fui trazido de volta à lucidez, quando a Tatyana apareceu do nada, puxando meu braço, chorando assustada e corajosa:
“Vem, Marcelo, pelo amor de Deus, vamos embora, você está sozinho aqui atrás!” 

Eu olhei para a jornalista e despertei:
Moça, o que você está fazendo aqui? Me solta! Vai pro carro agora! Tá tudo bem! Aqui EU ESTOU EM CASA!

Já juntava gente, homens de facão empunhado. O Thiago também voltou para me buscar… Então me constrangi com a preocupação deles … Pus meus pés no chão! Fui ficando calmo e me deixando conduzir ao carro só para tirar a Tatyana dali…

Olhei para trás e o moço estava ajoelhado, olhando para o céu, enquanto invocava alto maldições celestiais contra quem fosse chamar a polícia! O Thiago o acalmou e o ergueu, e disse que a questão não era policial para nós (nem prova tínhamos de nada, na verdade). Cheguei a voltar e me postei irônico a frente dele para esperar um raio feiticeiro cair na minha cabeça e dizer para ele quem era o bruxo da história toda. O Thiago insistiu: Sai daqui Marcelo. Obedeci… Sentei ao lado do motorista no carro. Todos nós entramos… Pedi desculpas aos meus companheiros e disse que só estávamos enterrando o Michael: Eu sei o que estou fazendo -– disse como se soubesse, porque, no fundo, eu estava feliz com aquela zona toda, com o barraco entre os desalmados.  O carro foi ligado, e o “profeta” perturbado ainda apareceu na minha janela tagarelando, angustiado, com cara de dor. Dessa vez não ouvi. Só abri o vidro e disse com o veículo já em movimento:Try to sleep, man! Just try to sleep!

(Que Deus lhe tire o sono até que ele se arrependa e se converta ao bem e à sanidade!).

O cortejo se dispersou e à medida que nos afastávamos de Oron tudo ficou quieto. No nosso coração e cultura, as velas foram apagadas e o caixãozinho branco foi lacrado, e o Michael… Subiu! Vive com meu Pai desde o dia que “partiu tão cedo desse mundo descontente”, porque dos pequeninos é o Reino dos céus, e lá só entrará quem se parecer com uma criança. A gente nunca quer baixas nessa guerra que já vai para seu quarto ano no front, mas sem essa Esperança de Eternidade, nem adianta enterro dos que não conseguimos salvar, pois, não havendo Deus, estamos todos na lama eterna. Mas Ele salva a todos, Ele não falha!

O dia seguiu bem. A noite caiu calma. Não temos seu corpinho, mas teve um sepultamento o menino Michael! Celebro sua vida e valorizo sua morte. Ele é um amado!

Hoje, enquanto lembro disso, meu filhote Luquinha apaga as velinhas de 9 anos!

Estou comendo o bolo… Aqui… ESTOU EM CASA!


Marcelo Quintela

 


0 comentários:

Postar um comentário