Quando o Michael fez 8 anos sua vida ficou mais difícil do que difícil já podia ser viver no distrito de Oron (Nigéria), um lugar permanentemente enlameado, cheio de ruelas sinuosas de terra batida abertas no meio do mato alto, regado de um cristianismo supersticioso, que exagerou elementos folclóricos, para encher as consciências de medo, e ao final, se apresentar como solução da fantasia que alimenta. É a fé no terror, a idade das trevas em pleno século XXI. Mas terror mesmo foi o fim da vida do Michael.
Seu pai se fez profeta-missionário de uma dessas igrejas malucas e não demorou para o mundo desabar sobre a cabeça do lindo garotinho: podia vir a se tornar um bom estudante, podia um dia sair daquele brejo e tentar a vida na cidade, onde a seu tempo experimentaria o coração palpitando aquela dorzinha gostosa dos enamoramentos da adolescência, e quem sabe, se casaria, se formaria orgulhoso, podia ter filhos… Mas não pôde mais nada. Michael foi arrancado da vida no dia que se tornou uma “crianca-bruxa”. Nenhuma criança é bruxa (lógico!), mas se um sacerdote cheio de crédito na comunidade o rotular assim, já era. Gruda! Para sempre! “Crianças-Bruxas” são diabinhos enrustidos e fazem mal aos que com eles cruzam… (Unicef, 2010).
Da igreja que o condenou a carregar essa cruz, Michael seguiu, forçado pela multidão, para sua via-crucis. Eu conheci a rua na qual ele foi cercado por dezenas de adultos gritando raivosamente palavras de comando, obrigando-o a confessar o status espiritual revelado no julgamento ocorrido naquele “Sinédrio”. Acuado, o menininho o fez: “Eu sou!”.
No dia que o tio acertou sua cabeça com uma barra de ferro, Michael – que não entende o mundo e nem a cabeça dos adultos – se entendeu sozinho de tudo nessa vida, e percebeu que só sobreviveria se fugisse da vila. Fugiu sangrando. Caminhou esfomeado e confuso na escuridão da madrugada. Ele estava nos procurando. Ele sabia como nos encontrar. Rondou por muitas noites a casa do nosso chief, uma espécie de padrinho do Caminho-Nações na Nigéria. E com a cabeça ainda vazando criou coragem e bateu à porta. E então nosso velhinho o trouxe aos braços da equipe. Pela primeira vez, alguém abraçou e acolheu o Michael. Mas foi também a última…
Seus dias conosco foram poucos. A polícia exigiu que seu pai o recebesse de volta e prendeu seu tio, solto depois de interrogado. O Michael comeu, bebeu, recebeu atendimento médico, e foi devolvido. Foi devolvido para a morte. Ele sumiu apesar da nossa vigilância…
Mataram o Michael aos 8 aninhos e ninguém sabe quem foi. Mataram o Michael e ninguém sabe nem onde jogaram o corpo. Mataram o Michael e a polícia manteve o inquérito fechado. Mataram o Michael e seu pai foi ao culto, sua mãe não chorou, sua avó não se comoveu e nem clamou por justiça. Todos seguiram “em paz” o fluxo de suas próprias trevas.
Agora em setembro faz um ano que o menino desapareceu. Um ano que o procuramos… As vozes das ruas já vinham avisando que ele fora assassinado, mas o Leonardo insistia em continuar preso a uns restos de esperança. Não por culpa, mas por tê-lo deixado escorregar por entre os dedos. Afinal, a Missão é: Salvar “crianças-bruxas”!!! Mas durante a recente expedição “Oásis no Deserto” voltamos à Oron, à casa do terror, e pedimos por uma reunião entre nós, o pai-sacerdote, a mãe jovenzinha e a avô que criou o bebê. Todos juntos numa sala escura, sentados em círculos, cara a cara.
Todos se mantiveram calados, com o olhar vago, às vezes debochado. E a avó disse que no dia que o entregou ao pai, há sete anos atrás, lavou as mãos!
E assim fizemos!
O Leo “bateu o martelo” e acabou a reunião sem diplomacias: “Estamos assustados com a paz de vocês. Hoje estamos encerrando nossa procura. Hoje estamos enterrando o Michael diante dos seus executores. Sim, cada um de vocês o matou desde que ele nasceu. Não adianta lavar as mãos!”
Mas, de repente, atrás de nós vinham todos eles, brigando e gritando entre si, e até com gente que a gente não tinha nem visto! A avô berrava com o pai palavras de maldição, o pai gritava com a velha e ninguém conseguia sossegar! Vinham atrás de nós, num cortejo de iras, caretas, falas e sentimentos bem diferentes do que testemunhamos minutos antes, quando eles estavam “em paz”…
Agora sim. Bagunçamos tudo! O terror de Deus caiu sobre eles! Manifestaram o inferno que os habita! Em meio à tristeza, sorri sozinho sem nem olhar para trás. Aquela gritaria soou doce aos meus ouvidos e me subiu uma satisfação indescritível de termos feito com que eles sentissem alguma coisa… Qualquer coisa que se sinta. Como assim um pequenino morre e ninguém fica desconfortável? Honramos nosso menino…
Meu luto satisfeito foi interrompido pelo pai que tentava se por ao meu lado naquele caminho estreito que seguíamos em fila. Em sua defesa, ele gesticulava e gritava que nunca tinha odiado o próprio filho. Eu disse a ele que não queria conversar, que estava triste e que não dava crédito a nada que ele vinha dizendo…
Daí, ele se disse insultado por mim, já que eu me mantinha caminhando de costas meneando a cabeça para seu falar frenético. Até que ele conseguiu minha atenção: “Eu sou profeta-missionário do Deus Altíssimo, eu sou o pai do Michael! - esbravejou. Antes que eu pudesse pensar, parei com o ar me saindo forte e quente pelas narinas numa expiração repentina. Estanquei os passos, virei pra ele com o dedo enfiado em sua cara, que se enfiou em meu dedo por causa da forma brusca como me voltei sem que ele parasse de andar, e gritei cuspindo a saliva misturada às lágrimas: No, you are not…! NÃO É! Você não é o pai do Michael! Você não é profeta! Se fosse saberia que eu sou! E tenho uma mensagem enviada pelo Pai do Michael. Sim, ele tem Pai! Ele mora com o Pai dele! E o Pai dele, nos céus, está esperando para encontrar com quem matou Seu pequenino! Ele só está esperando, você está me entendendo, homem!?
Então fui trazido de volta à lucidez, quando a Tatyana apareceu do nada, puxando meu braço, chorando assustada e corajosa:
Eu olhei para a jornalista e despertei:
Já juntava gente, homens de facão empunhado. O Thiago também voltou para me buscar… Então me constrangi com a preocupação deles … Pus meus pés no chão! Fui ficando calmo e me deixando conduzir ao carro só para tirar a Tatyana dali…
Olhei para trás e o moço estava ajoelhado, olhando para o céu, enquanto invocava alto maldições celestiais contra quem fosse chamar a polícia! O Thiago o acalmou e o ergueu, e disse que a questão não era policial para nós (nem prova tínhamos de nada, na verdade). Cheguei a voltar e me postei irônico a frente dele para esperar um raio feiticeiro cair na minha cabeça e dizer para ele quem era o bruxo da história toda. O Thiago insistiu: Sai daqui Marcelo. Obedeci… Sentei ao lado do motorista no carro. Todos nós entramos… Pedi desculpas aos meus companheiros e disse que só estávamos enterrando o Michael: Eu sei o que estou fazendo -– disse como se soubesse, porque, no fundo, eu estava feliz com aquela zona toda, com o barraco entre os desalmados. O carro foi ligado, e o “profeta” perturbado ainda apareceu na minha janela tagarelando, angustiado, com cara de dor. Dessa vez não ouvi. Só abri o vidro e disse com o veículo já em movimento:Try to sleep, man! Just try to sleep!
O dia seguiu bem. A noite caiu calma. Não temos seu corpinho, mas teve um sepultamento o menino Michael! Celebro sua vida e valorizo sua morte. Ele é um amado!
Hoje, enquanto lembro disso, meu filhote Luquinha apaga as velinhas de 9 anos!
Estou comendo o bolo… Aqui… ESTOU EM CASA!
Marcelo Quintela
0 comentários:
Postar um comentário