segunda-feira, 6 de abril de 2015
O perigo da semente
segunda-feira, abril 06, 2015 Posted by: Caminho em Big Field., 0 comments
O relato a seguir é verídico e foi
adaptado apenas para fins literários
Por Ricardo Philippsen
Tudo começou com uma ideia que parecia
inofensiva: A partir daquele dia, na pequena hortinha no fundo do quintal, eu
deixaria as hortaliças completarem seu ciclo de vida. Em outras palavras,
deixaria elas produzirem sementes. Esperava assim não precisar comprar mudas ou
sementes com tanta frequência.
Eu não fazia ideia do que aconteceria
depois disso.
No início fiquei fascinado, descobri
flores que eu jamais tinha imaginado existirem, entrei em êxtase quando vi
desabrochar a primeira flor da chicória, de um lilás exuberante ela passou a
enfeitar a minha horta. As primeiras sementes vieram, amadureceram, foram
colhidas e semeadas.
Ah se eu soubesse…
Tudo parecia bem, as mudinhas cresceram
como esperado mas algo que eu não tinha previsto começou a acontecer: nem todas
as sementes foram colhidas, algumas simplesmente se espalharam desordenadamente
pela horta, caíram em canteiros que não lhes tinham sido destinados e foram
levadas por pássaros para lugares ainda mais indevidos.
Acabei ficando com dó de arrancar as
plantas, não achei que as consequências seriam tão grandes.
Com o passar dos meses fui perdendo o
controle, a horta ficou bagunçada. Alface nascia do lado do tomate, as
cenouras brotavam por toda parte, framboesas e physalis cresciam ao pé de
outras árvores e os canteiros de flores da minha mãe agora estavam infestados
de comida.
Talvez eu devesse ter parado mas acabei me
acostumando com a ideia e deixei a natureza seguir o seu curso.
Com o tempo não era mais apenas a bagunça,
eu tinha um outro problema, a horta tinha se alastrado por todo o pátio. O
pátio até que ficou bonito, começou a chamar a atenção, e para não fazer feio
começamos a caprichar cada vez mais, eu não poderia admitir pros vizinhos que
eu não estava no controle, comecei então, eu mesmo, a fazer canteiros.
Mais um problema. A produção ficou grande
demais, e como todo mundo sabe, é pecado jogar comida fora. A solução, ou assim
eu pensava, foi dar o excedente aos vizinhos. Ruibarbo para um, espinafre para
o outro e em pouco tempo eu tinha as crianças dos vizinhos grudados na cerca
pedindo morangos. Dias depois observei uma dessas crianças andar de um lado
para o outro com uma enxada na mão, achando que aquilo era algo a ser copiado.
E não foi só isso, os vizinhos não
entenderam nada. Ao invés de perceber que eu estava tentando me livrar das
sobras eles ficaram felizes, vinham para a cerca conversar e insistiam em retribuir. Quando não era um convite para o café, um pacote de biscoito caseiro
ou um pedaço de torta das frutas da minha horta, era um casaco que tava
sobrando ou alguma outra coisa que eu talvez pudesse usar.
Para me livrar das folhas que já não
serviam para consumo eu jogava elas por cima da cerca para as galinhas de um
dos vizinhos. Em pouco tempo começaram a chegar os ovos para retribuir.
Um amigo resolveu agradecer doando esterco
das suas vacas. Ovos valem mais do que restos de folhas, esterco mais do que as
poucas verduras, logo, eu tenho que dar mais verduras, mas e depois? Ganho mais
esterco, minha horta produz mais e eu tenho que achar outra pessoa para quem
dar mais hortaliças.
Entrei em um ciclo vicioso. Cada vez mais
comida, cada vez mais sorrisos, mais conversas e mais sementes. Já não preciso
mais ir ao mercado comprar hortaliças, faz anos que eu ganho tanta roupa que
não posso mais ir ao shopping comprar minhas próprias, passo tanto tempo na
horta que mal sobra tempo para a internet, nem lembro quando foi a última vez
que eu assisti televisão.
Sinto que eu estou perdendo o controle das
coisas.
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